A história Presente

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quarta-feira, 17 de maio de 2023

Formação da cultura brasileira

 

O branco, o índio e o negro são produtos de uma construção cultural e social.







Cultura: são sentidos e significados e pelo fato dela ser dinâmica, os comportamentos sociais mudam com o tempo. São os antropólogos que primeiro falam em cultura, é ela que formula o conceito de cultura, os historiadores fazem isso muito tempo depois, é um fenômeno que se refere a um corpo social, não existe cultura individualmente, mas em um grupo social. A cultura tem mais de um significado: uns pensam como cultivo, outros como acumulo de conhecimento; todos os sujeitos tem cultura, por que a cultura são os sentidos e significados que todos nós damos aos nossos comportamentos sociais.

Sendo assim a cultura esta em todo lugar, em casas, casamentos, fenômenos religiosos, no que comemos nos papeis de gênero, esta no conhecimento de espaço. A cultura também nos da identidade, nos pertencemos a um grupo, no caso, no meu; o fenômeno cultural me aproxima do sujeito do meu grupo e nos afasta do sujeito do outro grupo.

Etnocentrismo: ao olhar a cultura do outro, a nossa cultura será sempre o parâmetro do outro: preconceito racial, genocídio, etnocidio, é olhar com desprezo. Aculturação não se usa mais, pois isso é negação, há sim uma ressignificação, no sentido religioso, não é o sincretismo. Usa-se mais a palavra “dupla pertença”.

 

 

 

 



A cultura é social e dinâmica , por exemplo, a certidão de batismo até a república era o documento oficial, através desse documento é que ele tiraria os outros documentos. Com a república, surgiram novas oportunidades para emitir novos documentos, mas eram extremamente caros. Muitas crianças não tinham sobrenome, o registro civil era registrado com o prenome somente, nem nome nem sobrenome. As repartições públicas exibem símbolos cristãos, mas como Estado laico não deveriam proceder dessa maneira. A igreja hoje ainda está atrelada ao Estado brasileiro.

História da cultura de Peter Bourke: a academia francesa é antropofágica, ela trabalha somente os autores locais, diferente dos brasileiros, temos os clássicos, por exemplo: “eu lhe cito porque tu me citas”.

 

 

 


Construir casa não é cultural, a maneira como se constrói é que é cultural cultura é um fenômeno que só pode ser entendido socialmente, toda cultura se modifica, o processo histórico é que o modifica, são os processos que fazem essas mudanças, por exemplo, os conflitos sociais. A cultura também é modificada, não é pelo contato que a cultura se dinamiza, o que faz a mudança não é o contato, mas sim a mudança interna do grupo.

O processo histórico independe do processo histórico de cada grupo, são aspectos forjados, construídos dentro da ciência antropológica, para discutir isso, o primeiro passo deve ser multidisciplinar, é preciso ter a visão da trabalhar a categoria cultura, essa atividade é multidisciplinar, porém é preciso pensar na historia como idéia de cultura.

A memória só pode ser pensada a partir da idéia de cultura, pois memória é construída dentro dos sentidos e significados, por exemplo, se for trabalhar a greve dos professores, deve-se trabalhar a greve dos professores, por que é memória, é a construção de como se vê a greve e esse acontecimento. A definição de cultura quem forjou foi à antropologia, as outras áreas da ciências foram entendendo e se apropriando desse conceito como se fosse pequenas gavetas:



 

 


Para a historia trabalhar com a categoria cultura, ela teve que se modificar, teve trabalhar com novos sujeitos, novas temáticas (não as tradicionais do materialismo). Independente de algumas características históricas pode-se trabalhar a cultura, a partir de determinadas características teóricas, como existem algumas características que me impedem de trabalhá-las, pois ela não está em tudo.

O que é verdade? Não existem duas verdades de duas realidades, não se trabalha a verdade e sim o que é verdade, pois na história fez-se erros e acertos; a história da cultura não trabalha com fatos. A história não faz toda a mudança e sim os sujeitos, é possível fazer a crítica sobre a ideologia do trabalho do historiador; o historiador pode trabalhar com qualquer corrente histórica, a ciência esta baseada no pensamento positivista.

Os historiadores se baseiam em duas questões para construir seu objeto de estudo, o recorte espacial e temporal, deve-se ter o cuidado quando se faz alguma crítica, muitas vezes por puro preconceito.

O que é cultura e qual o lugar da história da cultura? Quando se estuda a história da cultura não se estuda e sim a história do sujeito, a revolução não está na ciência histórica e sim em quem faz a revolução histórica; a historia trabalha com o tempo passado, a antropologia trabalha o tempo presente.

Qual o olhar a se aplicar ao objeto de pesquisa? Não existem temas e sim o olhar sobre o tema, para construir o objeto de pesquisa é preciso saber qual o campo cientifico para trabalhar o recorte; a teoria não explica a realidade, ela aponta métodos e técnicas. Estuda-se a teoria para buscar caminhos. Entende-se métodos como um caminho para trilhar, pensar teórica e tecnicamente um conjunto de dados.

 A escolha: o autor fala de um sujeito que faz determinadas escolhas acadêmicas, ele fala dele mesmo, falando que vem da área da geografia, mas tratava de relações espaço tempo. Em geografia não havia muitos autores discutindo isso, em historia isso era diferente, pois a maioria dos estudos eram voltados para a economia, comércio, relações econômicas e sociais, voltado para aquilo que conhecemos como infra estrutura, por isso faz leituras e estuda sistematicamente outro grupo de estudiosos voltados para a vida cotidiana, fora das relações econômicas.

A escolha na verdade são escolhas na área acadêmica com determinada visão teórica, por determinada temática, por atores, trabalhando as escolhas, todos esses trabalhos são assim; por que se chegou a esse tema? Onde está e onde quer chegar?

A história cultural para Duby faz-se sobre diversas escolhas, principalmente quando há a relação orientador-orientando, o orientando trabalhará a sua idéia, o orientador por ter mais experiência, terá uma idéia diferente do orientando, nesse ínterim é necessário ter um respeito mútuo para o orientador resgatar o sujeito para o caminho acadêmico, nem sempre será o caminho certo, por isso a relação será complicada, por isso a sensibilidade. A escolha do orientador tem que ter a proximidade com o tema, muitas vezes as escolhas são feitas por simpatia, quase nunca dá certo, o tema sim tem que ser próximo ao orientador bem como a escolha teórica; existem dois parâmetros, o tema e a teoria, o caminho dará o caminho teórico metodológico.

 A história continua. Duby no meio acadêmico destaca-se por ser um dos principais medievalistas da era contemporânea. Ele aponta para algumas questões como:

1º O que ele define como material? Provavelmente seriam os dados da pesquisa empírica e formal, na direção mais exata, na busca intensa de arquivos, atentando-se para as novas possibilidades de fontes; é o historiador da cultura trabalhando as fontes do período medieval, as fontes eclesiásticas ao passo que trabalha as fontes tradicionais com novas fontes e sujeitos.

Tem-se que olhar diferente sobre as ações, cabendo ao historiador da cultura buscando novas definições sociais; trabalhar arquivos que fazem parte das agruras do contexto, isso faz parte do oficio do historiador. Faz–se várias manobras para tentar descobrir informações sobre o período temporal da pesquisa, a escolha de estudar a história da cultura tem essas problemáticas no que refere a documentação.

Não se usa mais dados de fontes primarias (mais importantes) e secundarias (fontes menos importantes), todas as fontes tem o mesmo grau de importância, todas elas são importantes sobre todos os tipos de parâmetros. Quando se trabalha um tema, se possível, deve-se ir ao lugar da pesquisa para estudá-la, isso se chama marco de referência, trabalhando, por exemplo, uma rua de 100 anos atrás.

Ao ler um documento da vida cotidiana do mosteiro, nem tudo nos parece verdadeiro, real, afinal isto faz parte da vida interna de um sujeito, que para nós nos parece distante, todo registro é ideológico, o registro é a memória do sujeito, guardamos somente o que nos é interessante, senão é descartado. O historiador não precisa estar treinado para fazer a crítica, para o historiador a busca de dados é imprescindível através do documento, as evidencias vem das leituras teóricas, tudo está baseado de algo que a fonte, o dado e a pesquisa proporcionam.

O tratamento do material é a análise do documento, havia a preocupação da veracidade do documento, se ele era verdadeiro ou falso, com isso criticava-se a fonte, fazendo a biografia da fonte, quem produziu? Qual era sua finalidade? Por que e para que o documento foi produzido? Em um jornal, por exemplo, busca-se o editorial, quem assina esse jornal? O que o documento do jornal queria dizer? Quais as disputas de poder que estão por trás disso? É preciso criticar a fonte para fazer um bom trabalho, por isso é necessário conhecer o documento; a objetividade esta no pesquisador e no pesquisado.

Para que período, qual a nomenclatura, se chamou escravo, por exemplo, no Brasil? Africanos são escravos nascidos na África, negros são escravos nascidos no Brasil, negro da terra era como se chamavam os índios. Não basta ter o documento, é preciso entender o documento, tem-se que entender o documento através da caligrafia, deve-se identificar o sentido da frase através das palavras, para entender o sentido do documento. Não basta transcrever o documento, deve-se fazer a leitura analítica do documento para a compreensão da sociedade, entende-la no documento.

Sevicias: em processo família, processo crime, alguém é acusado de mau trato, são condenadas a pratica do vício. Estar a própria sorte é ser levado ao vício.

Comparação (esta em desuso) ou associação (possível)?

 

 

 



“O senhor tem cultura, mas é muito democrático”. Ter cultura não significa ter conhecimento formal para nos ocidentais, ter cultura neste caso é acumular conhecimento formal, isso significa sinônimo de democracia. Ser democrático é se colocar na mesma situação do sujeito.

Tradição: é um costume que dura no tempo e passado de alguém para alguém, é um aspecto de uma cultura dentro de um determinado grupo que se mantém com o tempo, é um aspecto de identidade de um dado conjunto social, que se identifica com esse aspecto e mantém por um longo tempo, não necessariamente intacto, ele está o tempo todo se modificando. O sentido com o tempo vai mudando, mesmo tendo a essência duradoura no início de seu sentido.

A história da África pode ser contada a partir dos mitos do candomblé, a partir da historia africana, essa história reflete a história de um determinado lugar, é a história do lugar, o que muda é o sujeito, podendo ser Deus ou semí Deus, a diferença se dará não a partir da crença, mas da maneira que o sujeito pensará. No judaísmo não há santos, mas heróis são personagens diferentes com sentidos parecidos, o Buda, por exemplo, esta encarnado em vários lugares, mas cada lugar conta a sua história de reencarnação de sua história. Não se fala das qualidades dele, mas em contra posição dele em relação aos outros.

A tradição pode ser objetiva ou subjetiva, onde o sujeito fala de si na sociedade, a pessoa se identifica a partir de um objeto, essa tradição pode ser identificada a partir do seu patrimônio ou do patrimônio; o caboclo, por exemplo, é uma figura misteriosa. A identidade da tradição fica em um grupo e posteriormente ela é dada a outro grupo com sentido totalmente diferente, esse é um padrão, mas com sentido diferente.

Não é pelo fato de que a tradição muda que a cultura também muda, busca-se uma memória que não é nossa, mas não se pode dizer que isso não faz parte dessa sociedade; a tradição sofre mudança, mas sem as pessoas perderem a identidade em relação à cultura, por exemplo, vatapá: três tipos de feijão-branco, preto, fradinho.

Quando não se entende a cultura, ocorre uma visão cristalizada, as tradições das cidades também acompanham essas mudanças, o sujeito muda a realidade da cidade de acordo com os movimentos naturais; o comércio tende a se adaptar a realidade vigente. A tradição esta na cultura, é uma forma de identificar o aspecto da realidade, é o que dá aspecto a vida da gente de maneira cultural.

Toda relação social estão relacionadas com a cultura: nascer, estudar, construir a visão de mundo, adotar uma perspectiva religiosa, são ações pensadas, são escolhas do sujeito, pois a cultura não nos dá uma possibilidade de viver e sim multiplicidades; o indivíduo tem múltiplas disciplinaridades, ela não é o único fator de dizer o sujeito como ele deverá ser ele faz escolhas multiculturais dentro do corpo social, ele por sua vez é sempre disputa social de poder.

A alteridade é o oposto ao etnocentrismo, a sociedade se olha sempre “olhando” o bem e o mal, a realidade não é tão dicotômica assim, se nos identificamos com nossa cultura, a outra será ruim, todas as outras formas de viver não prestam. Em alguns momentos o etnocentrismo se exacerba, nesse momento ele vira preconceito, ocorre então o problema de rejeição da cultura dos outros culminando em crimes, genocídios, etnocidio, etc.

Alteridade é um exercício, precisamos olhar para os outros e reconhecer as diferenças, ninguém é mais ou menos ignorantes do que os outros é preciso se colocar no lugar do outro para perceber essa diferença. Discurso da negação é quase como uma afirmação, é fazer uma afirmação de um estado social diferente do seu.

Cultura como ruptura – José Américo Peçanha. Para o autor existe dois momentos: antes e depois com sentidos produzidos pela produção humana a partir da Grécia antiga baseada na filosofia centrada no ser dotado de razão.

Doxo: esta relativo a idéia de Deus.

Episteme: é a idéia de ciências, por exemplo, Descartes.

Hoje se pensa a partir do pluralismo, não se olha a cultura como unificada: não existe uma cultura baiana, uma cultura do ocidente e sim os vários aspectos que forma a cultura, pois ela é mutável por conta dos processos históricos que uma sociedade vive. É a cultura que nos dá a diferença de outras sociedades e sujeitos, não sendo melhores, e sim diferentes, nem melhores do que nossa cultura, assim fazemos um exercício constante de alteridade, vivem de forma diferente, mas não melhor nem pior do que a nossa.

Essa visão não significa um olhar atemporal ou intemporal, são diferentes, pois passam por processos históricos sociais diferentes, pois a relação de poder da sociedade são diferentes, podendo ou não coincidindo os olhares sobre o mesmo objeto: os conceitos de família, sociedade, religião são diferentes.

É preciso entender a sociedade em todas as suas bases estruturais, é preciso se colocar no lugar do trabalho de quem faz esse trabalho; isso é enquadrado em teoria, metodologia e técnica. É necessário ainda os parâmetros de cientificidade para a história? O que torna a historia um senso comum? No recorte, por exemplo, trabalha-se o espaço temporal, geográfico e o sujeito, baseado nisso, o que me torna um historiador? O que torna a história uma ciência?

1º É preciso criar um objeto cientifico, por exemplo, trabalhar o samba de roda, o que o historiador quer saber sobre o samba de roda?

2º Como se analisa esse objeto? Qual o meu recorte teórico de análise? Quais as categoria de análise da história social? Como fazer essa teoria com a fonte que se está usando?

A idéia hoje de cultura é de ruptura no sentido de dialética (materialismo histórico). 

A ciência não está para arrumar conhecimento, mas para desarrumá-la, para compreendê-la. A cultura se modifica tal qual todos os processos de mudança da sociedade o tempo todo, por exemplo, as diversas formas de resistências, são estratégias de poder na relação de poder.

Cria-se então estratégias de ruptura, isso também acontece em relações de gênero, houve a mudança pelas lutas e rupturas nas diversas sociedades, isso se construiu em diferentes sociedades. Os processos históricos empurram os marcos históricos, as ações sociais tem a manifestação dos sujeitos sociais, a composição imprime a sua marca.

Em sala de aula vê-se essas mudanças com componentes contemporâneos com mudanças que imprimem marcas em todo o lugar que a gente vá tudo é feito pela ação, ruptura provocada por todos nós. Na verdade a unidade ocorre na ruptura, há a confusão, o conflito que as temáticas aparecem, a cultura nos dá um rol de possibilidades, por exemplo, as culturas alimentares, os aspectos que se vive dentro dessa sociedade.

São significados diferentes, são rebeldias possíveis com rupturas que nos fazem andar sempre pra frente, são as transformações, as evoluções do pensar cientifico: sujeitos primitivos e civilizados, nesse sentido é necessário evoluir no pensar cientifico. Não existem termos para dizer se a cultura é mais ou menos evoluída, que termos usa-se para fazer essas comparações? São culturas diferentes, nem melhores nem piores, diferentes com certeza.

Multiverso cultural: antropologia e materialismo histórico (marxismo) através das dialética.

Dialética: é um envolvimento dentro do corpo social (sociedade) que representa a contestação, os conflitos, as disputas, as relações nos vários aspectos nas relações sociais. O materialismo histórico fala das lutas de classe, a dialética não é um movimento uniforma, pelo contrário, é um movimento disforme, com significados, maneiras, comportamentos diferentes, não há um processo de dialética e sim os processos de dialética.

A dialética nunca será de uma espiral, mas um movimento que vai para todos os sentidos, sem revés, sem centro de gravidade, o processo dialético é justamente aquele que provoca as rupturas, por exemplo, é possível entender o processo de escravidão sobre a relação de cultura. É uma dialética que transforma a vida social. São disputas inerentes dos que vivem em sociedade.

Negros da terra: indígenas.

Negros: são os nasceram no Brasil ou na África.

Verdade: cada vez que se aproxima do sujeito humano, menos verdade o fato se torna, o que ocorre na verdade são verdades em construção.

Por que as religiões cristãs imputaram ao orixá a figura do diabo? Para os orixás africanos essa dicotomia não existe, um deus especificamente foi tomado como o representante do diabo, pois ele menos tem a idéia do bem ou do mal, na mitologia ele não se apresenta bem definido como Deus ou Diabo.

Na sociedade ocidental se baseou nas idéias judaico cristas essa idéia, foi uma dicotomização que não conseguimos resolver na sociedade ocidental, por exemplo, o branco e preto, o bom e o mal, o querido e o odiado. Por que o moderno não pode conviver como o antigo?

Teoria do evolucionismo cultural: a sociedade se constituiu a partir do pensamento ocidental, toda a América tem esse pensamento judaico cristão, hegemonicamente a América como um todo pensa assim, bem como na África e Ásia.



Tempo: é um marco cronológico, são marcos universalizadores, por exemplo, 4 de julho de 1776...

Temporalidade: são construções feitas dentro das relações culturais e sociais, por exemplo, houve várias lutas antes do dia 4 de julho, cada acontecimento marcou o seu tempo e as temporalidades e as relações de tempo dos sujeitos que viveram aqueles acontecimentos. A esses eventos é dado uma marca de tempo, a temporalidade é a luta, a logística, o desejo de vencer e lutar.

O tempo é uma dinâmica construída diferentemente, na sua construção social e cultura, por exemplo, os escravos enganavam os seus senhores com o tempo; a noção de tempo é uma construção cultural, por exemplo, qual o tempo de lazer, de trabalhar, de dormir? Quando se reconhece a temporalidade, por exemplo, no meu tempo ... Qual a idéia de tempo? Ela ocorre através da ruptura da temporalidade, trabalhando as múltiplas historias, divergindo o tempo todo resultado das diferenças dos sujeitos entre embates, valores, argumentos, ...

A história natural do trabalho deve ser pensado naturalmente com as bases materialistas, pois o historiador esta se especializando em objetos específicos, é preciso ampliar esse olhar, pois é preciso ampliar o olhar histórico, pois existem aspectos de subjetividades: experiência vivencia e cotidiano.

A história progressista não é a positivista, ela sai do materialismo histórico provocando outra idéia. A história social não abandona as características que dão face ao materialismo histórico para a história, baseada em algumas categorias do materialismo histórico, mas não se trata a história somente a existência do material, pois o materialista busca sua manutenção da infraestrutura: economia e manutenção social do sujeito.

A idéia da manutenção do sujeito trabalha-se a objetividade, esse sujeito diz que falta subjetividade; as condições materiais da subsistência movem a sociedade, nós adquirirmos necessidades matérias desde que nascemos impostas socialmente através do sistema social e econômico em que vivemos; o materialista histórico trabalha buscando essa materialidade.

Quais os significados dos trabalhos em conjunto?

Quais as relações interpessoais utilizadas para essa construção?

A história social da às condições sociais ao sujeito. História social não é a mesma coisa que história cultural, a história social traz para si a idéia de cultura.


A política das relações de poder e sua ideologia (toda e qualquer idéia coletiva que coage os sujeitos sociais), a ideologia é sempre uma disputa de poder: o Estado nos impõe vários discursos, idéias e nos coage, nos obriga a fazer. O próprio Estado se omite em muitas coisas que deveria fazer e não faz, a história social parte do princípio da dialética enquanto a história cultural parte da perspectiva do consenso.

Enquanto a questão no Oriente Médio se baseava no petróleo, na América Latina era baseada no mercado próximo; as disputas étnicas são culturais para que vire material, por isso a dominação de um grupo sobre o outro, há uma disputa cultural, étnica. Num regime comunista não existia a superestrutura cultural.

A representação é uma categoria dentro da história cultural, não se usa ela dentro da história social, não se deve confundir aspectos teóricos com aspectos sociológicos; as fontes e os problemas criados conduzem a um problema teórico. Quando trabalhamos materialismo histórico trabalha-se somente o objetivo traçado. Deve-se ter o cuidado de questionar corretamente as fontes, saber trabalhá-las não em hipóteses e sim em questionamentos; o documento da igreja contém o ideário da igreja somente. 

Dedico essa postagem a brilhante antropóloga e professora Neivalda Oliveira, ao qual eu muito aprendi sobre a construção e o papel do homem na sociedade enquanto indivíduo cultural.

Senhor leitor, todas as imagens foram retiradas do site de pesquisa Google, não se sinta ofendido se por ventura, uma das imagens postadas for sua, a intenção do blog é ilustrar didaticamente os textos e não plagiar as imagens. Obrigado pela compreensão. TODOS OS DIREITOS AUTORAIS RECONHECIDOS.

Mr. reader, all images were taken from the Google search site, do not feel offended if perchance, one of the images posted are your, the blog´s intentions is to illustrate didactically the text and not plagiarize images. Thank you for understanding. ALL RECOGNIZED COPYRIGHT.

 


terça-feira, 16 de maio de 2023

Da dissidência do Dzi Croquettes a Tatuagem: políticas, subjetividades e corpos em performances.

Ese é meu trabalho de conclusão da dissertação de Mestrado.

ResumoOs filmes “Dzi Croquettes”, direção de Tatiana Issa e Raphael Alvarez (Brasil, 2009) e “Tatuagem”, direção de Hilton Lacerda (Brasil, 2013) demonstram sinais significativos, em suas produções artísticas, ao encenarem imagens peculiares de cada filme com as referentes formas dadas às identidades sexuais e de gênero. Entre a liberdade de expressão e o cerceamento com os quais projeta a história dos Dzis, entre a diversidade da trupe e a resistência que marca o poder de resistência em Tatuagem, seja pelo documentário, seja pela trama ficcional, o estudo busca analisar como o fomento ao corpo travestido compreende posturas que rompem com os estigmas, protagonizando cenas que conduzem à dissidência de gênero em atuação em pleno regime militar brasileiro. 

O grupo de artistas dos Dzi Croquettes esbarra com o regime de exceção, em Tatuagem, onde existe um espaço também em que as personagens gays incorporam gestos que desconstroem ordens. São as linguagens expostas nos corpos, nas relações politizadas e subjetivadas que a investigação terá como base de leitura, além de analisar as linguagens corporais dos/das artistas pelas performances de gênero e de sexualidades. As leituras têm fórum crítico cultural em Butler (1990, 1993, 2008), Cohen (2002), Féral (2009), Foucault (2011, 2019), Leite (2014), Miskolci e Pelúcio (2007), como imprescindíveis para compreender como as identidades LGBTQI+ são permissíveis na sociedade daquela época. Colling (2016), Louro (2018), Rolnik (1995), Thürler e García (2018) são importantes reflexões para nortear sobre a ditadura dos corpos e deslocamentos transgressores. Assim, no corpus crítico do trabalho, o estado da arte proporciona compreender a subjetividade e construir alternativas para o desenvolvimento do tema, trazendo sempre à discussão os conceitos ligados aos LGBTQI. 

Desse modo, pretendo apontar as vozes históricas que se faziam presentes em um espaço cênico performático. Trata-se de um trabalho cujos argumentos visam rebater a herança colonial, a heteronormatividade e a masculinidade tóxica dos dias atuais, apontando que a dissidência se constitui como partilha de modos de vida e de subjetividades as quais, as cenas artísticas visam compreender.



INTRODUÇÃO

1 A ditadura militar e dos corpos disciplinados

1.1 Da utopia do discurso às divergências da arte distópica

1.2 Se existe utopia, existe heteroutopia: a arte como política de subjetivação

2 Dzi croquettes: retratos da transgressão

2.1 Entendendo a magia de ser o dzi croquettes

3 Tatuagem – entre performance e marcas da paródia

3.1 Estado de arte: políticas anais

Considerações finais

Referências




INTRODUÇÃO
Falar de performance teatral nos palcos do Brasil em plenos anos 70 é algo que nos remete a alguns ícones das artes cênicas e, dentre essas estrelas do teatro e da dança, destaco a produção de dois filmes nacionais, uma produção de Tatiana Issa e Raphael Alvarez (2009) em forma de documentário sobre a trajetória do grupo Dzi Croquettes e o filme Tatuagem, dirigido por Hilton Lacerda (2013). São duas histórias semelhantes tendo como pano de fundo os anos da ditadura militar.

No movimento da contracultura, neste trabalho, os homens se vestem de mulher e rebolam “o proibido nem sempre era proibido” e, por isto, salientarei como as “bichas loucas ferveriam” em corpos magros e purpurinados revelando androgenia e malícia ao distribuírem alegria. As leituras e seus conteúdos alicerçaram este trabalho tendo como base um fórum de críticos culturais como Butler (1990, 1993, 2008), Cohen (2002), Miskolci e Pelúcio (2007), Féral (2009), Foucault (2011, 2019) e Leite (2014), imprescindíveis para entender todo o contexto a ser apresentado, para compreender como as identidades LGBTQI+ eram permissíveis na sociedade da época. Completarei ainda com Rolnik (1995), Colling (2016), García e Thürler (2018) e Louro (2018).

Os integrantes do Dzi Croquettes e os personagens de Tatuagem usaram do humor ácido e do sarcasmo para enfraquecer a utopia dos corpos docilizados através de uma matriz visando combater o controle sobre os cidadãos que, de acordo com Wittig (1992, p. 5), “não podem deixar estas coisas no poder do pensamento hetero ou do pensamento de dominação”. Nem binarismo nem abuso de poder sobre os gays: eles não eram abjetos como se dizia, eram gente! A ideia em questão era revelar que as pessoas não estavam sozinhas, que era preciso “tornar o invisível visível” (FÉRAL, 2008, p. 9) de forma a criar tensão nas estruturas normativas ordeiras e racionais através da pulsação do desejo e da anti-norma. 

A contracultura referenciará a proposta dos filmes pela ressignificação de conceitos e, segundo Cohen (2002, p. 43), irá “conceituar essas novas tendências de multilinguagem: ação, fusão e atuação”, dando à arte novos traços que redefinirão o teatro. Por isso, trarei como proposta principal a construção do discurso através dos corpos políticos que despertarão o confronto do corpo submisso e o lançamento das ideias dissidentes tendo o palco como espaço de resistência.

Importante destacar que meu objeto geral é analisar os filmes sob um conjunto de convenções e elementos componentes do Dzi Croquettes e de Tatuagem, este representado na ficção pelo grupo Chão de Estrelas. Não pretendo aqui analisar os filmes como crítico de cinema e sim observar o comportamento dos personagens auxiliado pelo recorte das imagens. São filmes que evidenciam corpos ardentes, ou seja, filmes que mostrarão corpos eróticos e suas rupturas com os estigmas sociais.

Pretendo, ainda, sob um olhar mais apurado, destacar os objetos específicos de minha pesquisa tendo como base o presente com o olhar para o passado para ser interpretado como algo reativo, assim, destacarei o potencial que nosso teatro tem a oferecer, inspirado nos filmes citados.


Destaco, para esta dissertação, a justificativa que se baseia na visão de que os corpos perturbaram as autoridades pelas performances “ofensivas” de seus corpos seminus transformando-se em corpos políticos ao revelarem ao público o desejo de mudanças que é defendido em Tatuagem e pelo grupo Dzi Croquettes. Por meio das imagens, os corpos substituirão as ideias ao exibirem a dissidência de gênero. Tal poder será relacionado à subjetividade dos corpos (ROLNIK, 1995).

Considerarei os filmes para traçar um perfil dos personagens dentro do caos social apontando para leituras construídas em cima da desnormatização dos corpos sem marginalizar o objeto e sim fazê-lo objeto de prazer, mister o papel da dissidência sexual e do gênero que indicarão até que ponto são normatividades da cultura sexista. Analisarei tais aportes indicando, nos referidos filmes, como serão desenvolvidos em torno das categorias de gênero e as discussões e conceitos cujo argumento encabeça uma onda política e de crítica cultural que requer o debate com a colonização do saber em torno da heteronormatividade e da masculinidade tóxica que atravessa a contemporaneidade. Entende-se heteronormatividade como o reflexo de práticas e códigos heterossexuais amparados somente pela relação matrimonial, pelo amor verdadeiro, pela lealdade da relação marido/mulher e pela composição da sacro-família judaico-cristã. Paralelamente à norma heteronormativa, existe o heterossexismo coercitivo, ou seja, dogmas de comportamento inquestionáveis pelos simpatizantes desta prática cujo pensamento é o de fortalecer e amparar os atos heterossexuais. (FOSTER, 2001 apud MIRANDA, 2010, p. 83-84).

A trajetória do grupo teatral Dzi Croquettes girará em torno do documentário sobre homens que conviviam no período do regime militar e visualizaremos os personagens através dos depoimentos e flashes de convidados, relatos estes que ajudarão a entender a dinâmica do grupo e como eles conseguiam driblar o regime disciplinar. O grupo se destacou por revolucionar os corpos masculinos pelo excesso de maquiagem e adereços femininos sem uma busca mimética pelo feminino.

Tatuagem é um filme de ficção que também ocorre na época da ditadura militar, com proposta contemporânea, e traz como tema principal a cruzada de um romance homossexual entre um soldado do quartel e um subversivo diretor de teatro situados no tempo-espaço onde as pessoas eram perseguidas por discordarem do sistema (contexto macropolítico na micropolítica dos corpos) e por falar o que pensavam.


Daí, questionaremos: como as imagens extraídas dos filmes revelam os corpos em estados de exceção, como se movimentam, se revelam, se expressam de forma a construir outros modos de vida, a se constituírem como sujeitos de desejos? Portanto, nos dois filmes, que se notabilizam no tema das identidades, as imagens são significativas e proporcionam críticas às normatividades do sistema social e cultural.

Ressalto a diferença entre a ditadura militar nas ruas e a ditadura militar nos corpos: a ditadura militar (sociedade utópica) nas ruas era vista como um símbolo materializado de poder; já a ditadura disciplinar (heterotopia) dos corpos era mais sofisticada e seus métodos se baseavam na agressão e na tortura psicológica. Pretendo, em minhas pesquisas, conhecer os corpos em estados precários, multicoloridos através da subjetividade e, para isto, será preciso achar respostas para os seguintes questionamentos: Qual o motivo da escolha dos filmes? Qual a importância da seleção dos fotogramas? Qual o objetivo das normatizações sobre os corpos? Até que ponto os filmes deslocam para uma outra potência de discurso? A arte cinematográfica ocorre no sentido de representação não como mimeses, mas sim como re-apresentação, de algo dentro da ordem do retorno e, assim, em quais sentidos são representados os discursos de dissidência de gênero?

Para responder a tais questionamentos, estudarei as bases epistemológicas do discurso através de leituras e farei a ponte do meu objeto de pesquisa com as dissidências de gênero e sexualidade. Esta é a proposta de minha pesquisa, mote de minha reflexão no campo cinematográfico através das duas obras com o viés analítico que problematiza gêneros. São leituras que prepararão o leitor para uma realidade “por mais estranha, obscura, visceral que separa o mundo limpo dos sujeitos e o (i)mundo dos abjetos, dos perdidos, dos irresgatáveis” (CYSNEIROS, 2014, p. 13). É nesse bojo cultural cheio de transgressões e provocações que dissertarei sobre os filmes dentro das perspectivas socioculturais.


Trago como proposta, no primeiro capítulo, a ditadura militar, que refletirá o controle sobre os corpos, discorrendo sobre como a sociedade disciplinar reage ao controle das liberdades civis, como ela pune os “subversivos” e, neste caso, como as pessoas homossexuais eram punidas. O período militar servirá como pano de fundo para essa produção, logo, não me aprofundarei no regime propriamente dito e sim nas consequências da promessa de uma sociedade idealizada pela heteronormatividade. A base epistemológica do discurso se fará presente neste capítulo pelas obras de Cohen (2002), Aguiar (2013), Cysneiros (2014), García (2016), Aguilar e Câmara (2017) e Foucault (2017), dentre outros.

Pretendo, ainda, dentro desse capítulo, esclarecer se existe um lugar idealizado pela utopia e se, neste lugar, há espaço para os homossexuais; em não havendo, mostrarei como a arte da apresentação performática trabalha esse (não) lugar através da política da subjetivação. O mesmo vale dizer para um corpo utópico e, se ele existe, se, nesse paradoxo, há um espaço onde os não tópicos vivem, pretendo mostrar onde está esse lugar.

Dedicarei o segundo capítulo ao documentário Dzi Croquettes, de Tatiana Issa e Raphael Alvarez (2009), à trajetória do grupo como um dos precursores do gênero teatral e como conseguiu, dentro das limitações impostas pelos militares, o sucesso que marcou uma época e, mesmo sob o rígido controle da censura, driblou seus algozes pelo jogo de palavras e pela inovação performática de corpos seminus nos palcos. Respaldo minhas argumentações, neste capítulo, pela leitura de Foucault/Preciado (1988), Lobert (2010), Thürler (2011), Silva (2017) e Mostaço (2018).


As apresentações do grupo não eram pensadas no sistema disciplinar em que vivia e despertavam a potência de verdade nas pessoas causadas pela ditadura militar. Sua atuação transloucada e andrógina permitiu aos movimentos da contracultura, dentre eles, o GLS, a oportunidade de resgatar os abjetos, abrilhantar os palcos e colorir a vida que, naquele momento, era pintada pelo verde oliva. Em seguida, dentro do mesmo capítulo, associarei a trajetória do grupo ao capítulo anterior sob o viés da sociedade disciplinar e finalizarei com conceitos que abordam a heterossexualidade compulsória, a heteronormatividade e a performance de gênero.

Finalizo, no terceiro e último capítulo, com o filme Tatuagem, de Hilton Lacerda (2013), cuja história acontece em um cabaré chamado Chão de Estrelas, situado na periferia de Olinda e gira em torno do romance entre um soldado militar e um diretor de teatro subversivo. Baseado nesses elementos, apresentarei a leitura da crítica cultural balizada em Deleuze (19871999), Ortolan (2011), Halberstam (2015), Aguilar e Cámara (2017), Butler (2017) e Zumthor (2018).

Neste capítulo, evidenciarei a construção do gênero através da interação dos personagens mostrando, em Tatuagem, que, abaixo da cintura, existe uma outra operação que não é racional, mas sim um elo festivo não organizado operado pelo cu. Posteriormente, ainda no mesmo capítulo, falarei da simbologia da “Polka do cu” com a mensagem de que ela passa por adequações tanto no público como no privado, ou seja, todo mundo tem, mas, aqui, ele ocupa um espaço político. Através dele, desnormatiza-se o seu significado pecaminoso pois, no filme, ele é alegre, escrachado e debochado.


Destaco, ainda, a cronologia dos filmes, com o Dzi Croquettes iniciando o registro histórico a ser finalizado com Tatuagem e, nas semelhanças encontradas, construirei as subjetividades. Apresentarei, junto com o primeiro capítulo, os dois capítulos finais respeitando as suas especificidades, documentário e ficção, em que pensarei os corpos como livres em um mundo contido pela disciplina, especialmente pela ditadura militar e de corpos rígidos.

Dentro de minha proposta, buscarei formas sobre o pensamento a fim de enriquecer a crítica e, como isso ocorrerá na relação dos filmes e esta minha dissertação, lembro que será necessário construir expressões que tratem do processo normatizador do corpo através da realidade imaginada por eles. Encerro esta introdução desejando aos leitores uma excelente leitura.



1 A DITADURA MILITAR E DOS CORPOS DISCIPLINADOS

Para compreender a intenção desta dissertação, apresento o documentário sobre o grupo Dzi Croquettes e o filme de ficção Tatuagem como objetos de pesquisa, sendo imprescindível situar o contexto socio-político-cultural das realidades propostas no documentário e no filme. A história brasileira, nos anos 60 e 70 do século passado, se destaca por vivenciar um período conturbado, principalmente no que se refere à supressão dos direitos civis e das produções artísticas.

Nesse período, surge o Dzi Croquettes, um grupo de homens dispostos a usar seus corpos como um entendimento dos efeitos da dinâmica de poder, sexo e heteronormatividade sobre os corpos abjetos. Eles não gozam o status de sujeitos, não aceitam o gênero e não se enquadram no padrão binário, logo, não existem socialmente, não são “apropriadamente generificados” (BUTLER, 2001, p. 161). Aguilar e Câmara (2017, p. 34) nos lembram que a “subcultura potencializava a luta no contexto contra a ditadura com o objetivo de livrar a nova visibilidade do sexo para que o corpo não se tornasse um tabu”, que a seminudez, neste caso, a proposta do Dzi, seria o novo elemento de discussões com os militares. Infelizmente, a censura não era exclusividade dos militares, pois as esferas públicas também trabalhavam para isto.

A arte de se apresentar independentemente de teatro ou cinema visava prestigiar os detalhes nas apresentações, pois são os detalhes que tornam a apresentação a musa do show. Trago aqui ao tema o pensamento de Cohen (2002, p. 40) que evidencia os artistas no sentido de “prestar atenção à forma de utilização de seu corpo-instrumento, a sua interação com a relação espaço-tempo e a sua ligação com o público”. Em suas palavras, era preciso inovar os conhecimentos e movimentos cênicos e o Dzi Croquettes soube explorar essa ideia criando um estilo único.

Em concordância com Cohen (2002) sobre o tema, cito Cysneiros (2014, p. 9) por apresentar, em sua dissertação de mestrado, como era ser um Dzi Croquettes, destacando um trecho de seu trabalho: “[...] seus componentes apresentavam um espetáculo que evoluía sem se fixar, sem se institucionalizar, e essa evolução era compartilhada com o público à medida que se desdobrava”. Eram jovens sonhadores e controversos, mas com propostas inovadoras, marcados pelo charme e exuberância nunca vistos em homens sobre um salto alto e a resposta do público não demoraria a aparecer.

Tão importante quanto o documentário do Dzi Croquettes, destaco o filme Tatuagem, mesmo sendo uma ficção, porque o diretor Hilton Lacerda soube explorar a relação de um grupo teatral em um período no qual era o governo militar o mandante do país. Dentre os trabalhos produzidos sobre a ficção de Tatuagem, era preciso destacá-los a fim de “mostrar um grupo teatral no final dos anos 70 provocaram o poder e a moral conservadora com os seus espetáculos marcados pela nudez e deboche” (SILVA, 2017, p. 78).

Lacerda situa a ficção no Nordeste brasileiro, não mais o (só) eixo Rio-São Paulo, e provoca o público no sentido de transportar o espectador para dentro de uma realidade antagônica envolvendo o diretor de um teatro subversivo (Clécio) e o seu objeto de desejo, um “milico” (Fininha) que servia no quartel e que, com sua postura heterossexual, se enclausurava no armário: isto, porém, estava prestes a mudar, afinal, com Clécio, foi amor à primeira vista (Fotograma 1):

Fotograma 1 − A improbabilidade: Fininha (o milico) e Clécio (o subversivo)


Fonte: Globosatplay

O Fotograma 1 mostra os dois protagonistas que vivem essa relação explosiva no período em que o Brasil atravessava um antagonismo abissal de turbulências políticas em que as liberdades e os direitos civis eram vigiados e tudo era temerário, perigoso. Nessa trama, há o diretor (Clécio Wanderley/Irandhir Santos) apaixonado pelo teatro, que defendia ideias que evocavam a liberdade (principalmente) sexual; o outro era um soldado raso das forças armadas (Arlindo Araújo/Jesuíta Barbosa) obediente e “moldado” pela norma heteronormativa que, obrigado a defender a pátria, tinha, dentre as ordens a serem obedecidas, a de combater os subversivos e transgressores da sociedade católica. Esta é, praticamente, a história do soldado para quem tudo não passava de desejos ardentes.

Durante longos vinte anos, a sociedade brasileira foi controlada e censurada, em um período em que se notabilizaram vários movimentos culturais, sociais e, principalmente, sexuais dentre os quais destaco o movimento “hippie”, a Primavera de 68 e a Rebelião de Stonewall − conhecida por iniciar uma série de manifestações violentas e espontâneas de membros da comunidade LGBT contra uma invasão da polícia de Nova York −, bem como os festivais de música e o Tropicalismo, na América Latina, onde a busca por direitos civis e mais liberdade era o grito de luta contra o controle do governo. Nessa efervescência política e social, surge o Dzi Croquettes, em 1972.

Uma das formas encontradas pelo grupo de criticar o regime era fazer uso de roupas femininas e maquiagem forte e exagerada. Sua paródia se baseava em figuras emblemáticas do século XX, no caso do Fotograma 2, o ditador Hitler caracterizado como uma bailarina “meiga” e ridicularizada cuja performance era de Claudio Gaya que se travestia com o intuito de satirizá-lo, afinal, essa foi a forma que o artista encontrou para expressar o descontentamento da sociedade.

Fotograma 2 – Cláudio Gaya e sua bailarina hitleriana

Fonte: Youtube

A mensagem passada pelo ator reforça a ideia de um grupo cômico e provocador que justificava seus espetáculos pelo fato de viver sob o regime de ditadura responsável por introduzir uma das leis mais ferrenhas de todo o período em que mandaram no país, o AI-5, cuja notoriedade se deu pela forte repressão e pelos atos de violência praticados contra a população composta por estudantes e trabalhadores; centenas de pessoas foram presas, torturadas ou mandadas para o exílio, dentre eles, intelectuais e artistas devido ao seu poder de influenciar as massas. No Fotograma 2, o artista soube reproduzir, cinicamente, pelo corpo magérrimo, um Hitler inofensivo. Quando Claudio Gaya[1] surge com o rosto exageradamente maquiado e vestindo roupas de bailarina, ele despreza e ridiculariza o soldado másculo e hetero e, neste jogo, ele atinge seu objetivo. Tal provocação foi captada pelos militares e, prontamente, começaram as advertências contra o grupo, pois, àquela altura, o alto comando responsável pela liberação da censura o entendia como um possível problema que merecia atenção especial. Quando falamos de ditadura, é preciso ter em mente duas coisas, força bruta e truculência e, no caso dos militares, era um tipo de violência institucionalizada pelo Estado cujo alvo seria os locais públicos e os teatros, como ocorreu no Teatro Galpão em 1968[2].


Não só soldados, mas simpatizantes do regime provocaram perseguição e a destruição dos lugares onde esses encontros ocorriam, processo em que era nítida a leniência das autoridades em punir os culpados. O Serviço Nacional de Informações (SNI) e a Escola Superior de Guerra (ESG) tinham sua doutrina baseada nos ideais rígidos do controle e da disciplina e tudo era feito em nome da segurança nacional. Ser homossexual, nesse período, era uma experiência única (e perigosa), afinal, eles sentiam na pele a discriminação velada sob os olhares de reprovação. No cinema, não seria diferente, tanto que trago, novamente, Cysneiros que trabalhou o tema, destacando os papéis gays até então como sendo “sempre retratados de modo superficial, sem história e definidos por seus desejos sexuais. Eram papéis de bufões efeminados, alvos de injúria e violência injustificada” (2014, p. 20).

Quando Cysneiros (2014) se refere ao Dzi como um grupo que “propagava sua mensagem sem palavras, mas rica em afetos”, percebo que a proposta do grupo era, na verdade, uma releitura do gênero e, para isto, era preciso transgredir, questionando, mas sem estereotipar o masculino e o feminino.

O cinema criava narrativas, produzia corpos heterotópicos caracterizados pelo uso da arte teatral e seu intuito era forjar corpos e locais que construíssem corpos e lugares a fim de evidenciar a bravura das subjetividades e, ao mesmo tempo, confrontar as diretrizes vigentes. A heteroutopia não via o ator homossexual com bons olhos: o heterossexual tinha preferência. Nesse lugar, as leis são regidas pelo ator macho, provedor e mantenedor da família, o pai exemplar: fora disto, as chances de conseguir um bom papel eram mínimas.


Na proposta da realidade utópica, a discriminação contra os artistas gays no teatro ou cinema era sempre acompanhada de papéis menores revelando a perversidade que existia nesse mundo artístico onde os personagens homossexuais tinham como final de seus papéis a morte ou o suicídio ou, ainda, serem ofuscados pelo “mocinho”, desaparecerem em tempestades, serem esquecidos em manicômios ou se tornarem cobaias de “curas” médicas e religiosas. Ainda dentro do tema, menciono o pensamento de Green (2000) por esclarecer, em seus estudos, que, no Brasil, independente do período, essa discriminação sempre ocorreu o que nos conduz ao Estado Novo (1937-1945) e, posteriormente, aos anos de chumbo[3] mostrando como sendo notória a preponderância dos papéis de gênero inflexíveis e de papéis que eram, na sua maioria, destinados a homens cujos personagens dificilmente seriam gays. As chances para um ator ou personagem que não fosse hetero eram mínimas.

As pessoas eram influenciadas pelos jornais, revistas e, principalmente, pela televisão que transmitia, em suas programações, dentre outros, os principais espetáculos dos carnavais no eixo Rio-São Paulo. A presença gay nesses lugares era massiva já que, no período carnavalesco, “era permitido ao gato ser pardo” e, assim, os homossexuais que se fantasiassem não seriam perseguidos, significando que não haveria problemas para o homem se vestir de mulher e que, se assim vestido, ele não seria constrangido se um outro homem se aproximasse dele: “dentro das festas carnavalescas” havia liberdade para isso sob as fantasias da noite paulista e carioca. Fora desse período, não eram benquistos se circulassem pelas ruas vestidos de mulher. Em paralelo ao tema, em entrevista concedida a Natalia Vilarinho, Halberstam diz que, independente da performance:

Vivemos um mundo com gêneros binários, somos todos uma combinação estranha das nossas identificações, da nossa socialização e das nossas propriedades físicas, mas eu não faria uma afirmação universal a dizer que somos isto ou somos aquilo (2015, s.p).

Foi o desejo por mais expressão de liberdade que motivou e fortaleceu, durante décadas, as resistências associadas aos eventos por mais direitos e possibilidades de escolha. O filme e o documentário em questão mostram a força policial desferindo golpes contra os gays, estudantes e artistas com o objetivo de acabar com os frequentadores e com os lugares onde se praticavam “sodomias”, ou seja, estabelecimentos cujo público-alvo era os gays, homossexuais, lésbicas, “sapatonas, bichinhas, viadinhas”, pois a ordem era encerrar as atividades desses bares, boates e, principalmente, dos teatros[4] por serem considerados “antros ofensivos”.

No trabalho intitulado “O outro lado das falas de si. O que podem encenar”, García destaca a importância desse discurso citando o Dzi Croquettes e o poder da fala, elementos que persuadem e empoderam o discurso das resistências, e nos esclarece que a dramaturgia atualmente:

São quebradas com a art-queer, quero dizer, a exteriorização de uma linguagem que mexe com um corpo queer, reconstruído em tempos e espaços diferentes. Nos anos de 1970, o grupo Dzi Croquettes repercute com alto teor de subversão, descentralizando os conceitos, inserindo a carga de subjetividade no contra-poder (2016, p. 12).


O sujeito não é facilmente dominado e, segundo García (2016), era preciso se reinventar e, nesta reconstrução dos corpos políticos, resolver os dilemas que os embates proporcionariam sendo preciso, para isto, dar uma resposta à altura e ninguém melhor que o Dzi Croquettes. Na verdade, a indústria do entretenimento precisava se libertar dos antigos formatos sobre como filmar, criar novas linguagens e esta era uma proposta mais provocadora do que libertadora para afrontar os desmandes militares.

Entre o descontentamento da sociedade e os militares, menciono o pensamento de Green sobre o tema quando diz que “um grande número de questões mais urgentes começava a desafiar o controle militar sobre a sociedade brasileira” (2000, p. 40). Para o autor, ficava cada vez mais evidente a dificuldade de controlar a sociedade e esses “descontroles” eram um sinal claro de que mudanças estavam por vir.

Diante do exposto e das promessas de novos horizontes, o Dzi Croquettes sabiamente escolheu como arma de revide a performance. O Fotograma 3 evidencia o fato retratando bem a realidade na qual o espetáculo acontecia enquanto as autoridades discursavam para parte da sociedade alienada, mas o show não podia parar e seguia junto com a batida da marcha militar e, cada um a seu estilo, se exibia como lhe era conveniente, fosse na avenida marchando sob o verde oliva ritmado pela baqueta do tamborim militar, fosse pela batida da música “Relance” cantada por Gal Costa (1973) com seus corpos seminus.

Fotograma 3 − Entre o discurso militar e a dança malandra: Dale e Paulette


Fonte: Dzi Croquettes

Ainda em relação a essa abordagem, trago Aguilar e Cámara (2017, p. 50) para a discussão quando esclarecem que “se o homem vestido é uma pátina superficial de civilização e bom comportamento, a nudez é a expressão de um desejo destrutivo porque nunca pode subordinar-se à moral original”. Para os autores, as roupas falavam por si (ou não) e utilizadas por eles eram elementos de provocação. Era como se até a nudez de Eva devesse ser coberta.

Os estudos de Foucault mostram o comportamento social submisso às políticas identitárias revelando a subalternidade da sociedade e, em relação a isto, ressalto os estudos feitos pelos grandes pensadores e filósofos do século XX, dentre eles, o próprio Foucault pelo seu entendimento sobre as mudanças sociais, os efeitos causados e as restrições como algo negativo desde a proposta iluminista. Ainda sobre as mudanças dos comportamentos na sociedade, diz que o poder e a resistência dos corpos acontecem como:

Processo de construção das subjetividades que torna esse trabalho único [...] A relação dos saberes e poderes da sociedade atual é que configura tais subjetividades para a construção de gênero, sexualidade, disciplina e controle dos sujeitos (2013b, p. 189).

Para Foucault (2013), o sujeito é influenciado pelo seu tempo e por tudo o que o cerca em uma relação recíproca e, assim, ele não é mais um integrante a ser manipulado, entretanto, dentro do sistema capitalista, há domínio sobre as massas e o capitalismo faz uso desses mecanismos para o domínio específico associado ao poder regimental.

A questão que proponho aqui não ocorre no sentido de duvidar dos embates das classes sociais, mas pela manutenção dos direitos como ser humano, desde os primórdios iluministas e o que precisamos, de fato, é olhar com cautela o fortalecimento das classes que ascenderam socialmente e foram responsáveis por questões que lidaram com os ideais revolucionários, culturais, políticos e por que não sexuais?

As tentativas de moldar o Dzi eram as mesmas usadas para controlar as apresentações no universo do Chão de Estrelas visto que, para os censores era imperativo acabar com as “bizarrices”. Ainda sobre o tema abordado acerca dos “subversivos”, trago para a discussão os apontamentos de Preciado que nos esclarece como o corpo marginal era, geralmente:

Sujeito à vigilância e normalização (por sua condição homossexual) converte o sujeito gay num hermeneuta privilegiado do espaço urbano: o gay pode ser entendido como [...] que passeia sem rumo determinado pela cidade em busca de novidades e acontecimentos (2017, p. 6).

Nesse cenário, poder-se-ia caracterizá-los como “desterritorializados” que, segundo Silva:

[...] ocorre quando começamos a nos questionar sobre um determinado problema, ao sair de nossa zona de conforto, e à procura da solução precisamos construir novos conceitos e outras formas de pensar como se fosse um processo concomitante, essencial para entender o ser humano e suas práticas (2001, p. 92).

Nesse sentido, a punição ocorreria apenas pelo fato de serem gays, mas eles eram exatamente o oposto e esta oposição se transformaria na sua bandeira. No caso de Tatuagem, a proposta era uma estética transloucada que permitia, no palco, na rua, no quarto, na praia, misturar o brega com o trash, a purpurina com espartilhos, pois o importante era a “fechação” contra os que os apontavam como má influência, logo, vigiados pelos “homens da lei”. Ainda acerca da territorialidade marginal dos corpos, dizem Miskolci e Pelúcio: “Uma sexualidade perigosamente marginal [...] alocada pelo discurso hegemônico nessa territorialidade, nas ‘zonas invisíveis e inabitáveis’ estão os corpos que não ‘importam’ [...] balizam as fronteiras da normalidade” (2007, p. 8).

O que ocorre é que, segundo Miskolci e Pelúcio (2007), existe uma forma de pensar o sujeito através da dominação no sentido de reprimir os corpos e na forma como a sociedade operaria esses processos condicionantes nos “devassos” para o seu “adestramento”. Quem discordasse sofreria punição, podendo ser submetido a certas análises que diriam se ele seria ou não um ser racional, digno de confiabilidade, que pudesse atender ao que era pregado pela heteronormatividade, caso contrário, seria mais um abjeto. No contexto, a heteronormatividade é compreendia como um reflexo de práticas e códigos heterossexuais amparados somente pela relação matrimonial, pelo amor verdadeiro, pela lealdade da relação marido/mulher e pela composição da sacro-família judaico-cristã.

Para ser notado, o artista, no palco, tem de ir além do pré-determinado, o que significa explorar novos horizontes para acabar com a crença de que o inusitado é perigoso. O Dzi combatia ´p pensamento, que perdurou por décadas na comunidade LGBTQI+, de que eles fossem os errados. Quando digo aceitar novos desafios, refiro-me à desterritorialização seja da mente seja do espaço-tempo e, nesse assunto, Bernd nos esclarece que tal pensamento não passa de uma:

Enunciação fraturada e híbrida (porque construída nas fronteiras de territórios culturais diversos) que não pode mais ser controlada e passa a oferecer novos horizontes críticos aos discursos confinados no interior de cosmologias hegemônicas (2004, p. 105).

Nesse processo, a ideia era conhecer locais de que não se fazia parte bem como perder o medo de penetrar nesses mundos culturais, alegres, pois as maravilhas deveriam ser descobertas e essa agregação de conhecimento e cultura faria não só do Dzi Croquettes um dos elementos dinâmicos que albergariam, futuramente, a proposta de Tatuagem[5] como um dos responsáveis pela construção de novos pensamentos, liberdade artística e sexual.



1.1 DA UTOPIA DO DISCURSO ÀS DIVERGÊNCIAS DA ARTE DISTÓPICA

Em tempos onde as pessoas tinham sua liberdade vigiada, viver pacificamente era quase uma aventura pois esse período, meados dos anos 70 e início dos anos 80, era um desafio e tanto, o desafio de driblar a lei que ocorria pela dificuldade de os corpos serem submetidos à disciplina do discurso defendido pelo governo militar. Destaco a importância das imagens utilizadas nesta dissertação como uma forma de facilitar ao leitor a relação do texto com a imagem recortada, tornando possível uma noção daquilo de que tratam os filmes Tatuagem e o documentário Dzi Croquettes. Pela riqueza do que elas captam, como o colorido, as expressões, elas conseguem “parar” o tempo para que nós possamos nos situar exatamente naquele momento. Tais imagens são importantes por revelarem o objeto de meu trabalho sob a ótica da inovação e todo o know how utilizado por eles nos cenários, nas músicas, nas danças; são elementos com características e recursos que qualificam a proposta dos diretores Issa e Lacerda e a liberdade utilizada por eles no processo de mostrar suas perspectivas cinematográficas.

Sempre que falo em sociedade, refiro-me a ela não como termo de discussão exclusivo da modernidade e, por isto, trago novamente Foucault (1988, p. 173) que corrobora que tais estudos “remontam à disciplina dos séculos XVII ao XVIII, caracterizados pelas mudanças da multiplicidade do pensamento até a atualidade a qual denominamos sociedade sob o cunho da disciplina”. É exatamente nesta modernidade que a contracultura é vista como uma força inovadora, pois seu objetivo é desfazer antigos preconceitos, cabendo ao sujeito valorizar tais prerrogativas para que o norteiem para enfrentar o período sob a tutela militar, na luta pelo socialismo, pela igualdade e pelos pilares que asseguram a democracia. Sobre esse assunto, trago o pensamento de Leão (2009) que esclarece quais as batalhas que devemos avançar sem perder a proximidade das linhas divisórias, afinal, cada particularidade fortalece nossos ideais. Associado ao tema, destaco Miskolci e Pelúcio por nos esclarecerem:

Esse processo de desnaturalização é o que ...denominamos de conflito com a ordem vigente de ... gênero, mas que não pode ser tomado como um enfrentamento engajado. Tal experiência de conflito ...pode ser até mesmo provocativa e desestabilizadora, mas não é capaz por si só de modificar a norma (2007, p. 3).

Sobre a ideia de gênero, destaco como o corpo amplia esse conjunto de ideias e práticas do devir que se distancia do que conhecemos por “masculinidade heterossexista” e a relação do Dzi Croquettes e dos personagens de Tatuagem nos remete ao âmbito da música e do teatro bem como a saltos altos, sutiã, peitoral peludo, abuso nos cílios postiços e barbas purpurinadas: a performance rebolativa era uma espécie de marca registrada da performance corporal. O gênero é trabalhado por inúmeros autores dentre os quais assinalo a definição de Butler que vê no discurso de gênero uma elaboração ou redefinição dentro do discurso político que não é “uma verdade psiquicamente pura, concebida como ‘intrínseca’ e ‘oculta’, nem é redutível a uma aparência superficial. Pelo contrário, sua condição insolúvel deve ser reconhecida como a relação entre psique e aparência” (2002, p. 75).

Para Butler (2002), o gênero representado não pode ser visto como verdade universal nem como algo somente pertencente à performatividade, não é nem escolha nem objeto de desejo, sendo, assim, incorreto atribuir a performatividade ao desempenho do gênero; o que ocorre, de fato, na relação entre gênero e sexualidade é uma negociação entre a identificação e o desejo. No seu livro Problemas de Gênero (2017), o gênero é trabalhado como um conjunto de ideias interdisciplinares trazendo para sí o discurso “com vistas a resistir à domesticação acadêmica dos estudos sobre gênero”. Aqui, o gênero é trabalhado a partir da construção de corpos diferenciados compreendidos, segundo ela, como “recipientes passivos de uma leitura cultural inexorável”.

Dito dessa forma, os personagens de Tatuagem e os artistas do Dzi Croquettes desconstroem a imagem do homem másculo, heterossexual, “machão” para dar lugar à nova proposta do homem transgressor, subversivo, em que as identidades masculinas são apresentadas de forma andrógina, como as bichas que, no filme e no documentário, “fervem”. A proposta deles tem como ponto fundamental desfazer os conceitos de gênero baseados no binarismo ou no homem e mulher cis. Conceitualmente, para Butler (2017, p. 26), o gênero foi construído para fortalecer as ideias retrógradas e o preconceito, assim, não foi a biologia que separou as pessoas e sim as ideias culturais que se tornaram o destino.

Se considerarmos os mesmos conceitos de gênero sob outro viés cultural veremos o gênero como um constructo social e cultural operando dentro de um sistema maior com estratégias que foram favoráveis à realização do que conhecemos hoje como sociedade moderna; na verdade, ele tenta romper, dentro da modernidade, com o mérito que lhe foi atribuído pela religião a fim de fundar e fortalecer a comunidade. Em Dzi Croquettes, temos personagens que criticam a religiosidade e, em Tatuagem, em seus trajes de freira e de bispo, com suas propostas, anunciam a sexualidade como resultado de projetos políticos comandados pelas classes dominantes através do Estado capitalista e o escracho à religião foi a resposta dada por eles. Entender o gênero é o mesmo que entender como a ciência e a tecnologia foram (des)construídas no público e no privado a fim de dar um vislumbre da construção de novas possibilidades simbólicas e nelas as diversidades que o gênero oferece.

O gênero permeia as relações humanas com o objetivo de ampliar as organizações agregando a elas o conhecimento de sua própria história, consolidando os sexos masculino e feminino como um produto resultante da própria construção lógica do poder. Era exatamente essa ideologia que o Dzi Croquettes combatia, de forma dócil, hilária, e cativava o público simpatizante com suas ideias de mudar o pensamento social, do desejo de menos controle, e seu sucesso foi possível graças às transformações que realizavam no palco: eles mudavam a aparência, faziam o uso de muita maquiagem, seus figurinos eram burlescos e, mesmo assim, abusando da feminilidade “graças aos corpos peludos” e os sentimentos à flor da pele, passavam sua mensagem política.

Quando Butler diz que o gênero não está associado ao sexo casual ou consentido, questiono-me se esse tipo de afir
mação não geraria mais conflitos que iriam além do que impõe o binarismo, como se dependesse unicamente do sexo, e percebo que isso atribuiria ao gênero não uma espécie de ação corporal e sim novas categorias, simbolizando e expandindo as resistências tanto no binarismo como nas novas restrições que analisam o gênero. Quando Butler (2002, p. 55) diz que o poder do discurso “de realizar o que ele denomina está relacionado à performatividade e, consequentemente, faz dele uma área em que o poder atua como discurso” ela o faz no sentido de dizer que a performatividade dos corpos não é um ato singular e sim a união entre o poder e o discurso da performance, repetida e imitada, várias vezes, pelos seus gestos discursivos.

O poder funciona como um condutor entre a produção do corpo e o corpo político, ou seja, diferentes meios para se chegar a um resultado, o controle do corpo através das normas disciplinares sociais e, para isto, é preciso se ater à análise do discurso sobre suas práticas e como elas interferem (in)diretamente sobre esses corpos. Nesse sentido, o corpo, para Foucault (1987, s/p) “é desativado de sua condição agente e passa a ser locus sobre o qual incidem as técnicas de poder” ou seja, a relação externa do poder do corpo se move e atua sobre eles.

Percebe-se que os discursos tanto de Butler quanto de Foucault estão dentro das propostas de Tatuagem e de Dzi Croquettes, pois os mecanismos de controle, a todo momento, investem nesses corpos, almejando corpos dóceis, mas não obtêm os efeitos que imaginavam, pois, por mais que se deseje domesticar o corpo, a vontade e o conhecimento são maiores. Todo ato performativo era ensaiado à exaustão e, assim, o grupo se apresentava com uma exuberância contagiante. Sobre essa magia que envolvia o público, Lobert (2010) via na forma como se apresentavam uma espécie de pilar fundamental, que os sustentava, como se fosse uma coluna vertebral e via na coreografia de Lennie Dale a precisão: era “exaustivamente ensaiada”. Na proposta do Dzi, o homem poderia ser quem quisesse, poderia amar quem desejasse, no entanto, respeitaria o “modo homem de ser”, defendendo novas propostas de ser, segundo Rogério de Poly, “nem homem, nem mulher, gente” (DZI CROQUETTES, 2009).

Os simpatizantes do grupo se multiplicavam, abraçavam a causa, um público alegre, e refletiam a desenvoltura e caricatura de seus ídolos. Nessa comunhão, as pessoas conheciam quem eram os integrantes do grupo, ou seja, brancos, negros e um estrangeiro, que descendiam de vários lugares do país, eram de diferentes camadas sociais, assumidos, casados, tinham filhos, entendidos, bichas.

A sociedade, por sua vez, os via como um “bando de viado” e, segundo Cysneiros (2014, p. 61), tal desaprovação se dava pela “ininteligibilidade descontínua que conectava seus sexos, gêneros e suas práticas sexuais era compartilhada com o público [...] era possível enxergar uns viados dando pinta e/ou o não tão silencioso levantar de uma revolução”. Segundo Tovar, “Como tínhamos essa variação no figurino, fizemos praticamente uma peça infantil. Era um bando de retardados, dançando como idiotas, vestidos de ursinhos”. Tudo fazia parte de uma espécie de caos, mas muito organizado, nessa “bagunça familiar”. Ainda segundo Cysneiros nos esclarece que as cumplicidades deles:

Se misturaram sem se confundir, compartilhavam o palco, a casa, as camas, os e as tietes, o dinheiro, enfim, a vida. A horizontalidade dos processos grupais, [...] realçavam ainda mais o contraste com a cena política repressiva e social de desigualdade (2014, p. 29).

Eles davam a entender, como uma afronta “hilária” à sociedade que os discriminava, um deboche que não constrangia as famílias tradicionais que eram os estranhos mais unidos que existiam e sua mensagem era a de que os diferentes eram mais próximos entre si do que muitos irmãos. Esta união os fortalecia e enchia de esperanças nos embates culturais e sociais contra a ditadura, assim, a luta travada pelo Dzi não era uma luta de armas ou cassetetes, era uma guerra psicológica que ocorria no mundo das ideias, na subjetividade do sujeito, eles trabalhavam seus corpos, disparavam com suas danças sensuais, seduziam pelo rebolado sensual, pela através da performance, da coreografia e das artes cênicas.

A proposta de Tatuagem, no universo cênico teatral, também ia de encontro às ideias já formadas, aos modos de ser já “engessados”, pois era preciso dar um basta naquela sociedade doente, cheia de rancor, preconceito, era preciso provocar. O filme de Hilton Lacerda soube explorar esses disparates e, para isto, deu liberdade ao grupo teatral para que seguisse a trilha de seus ídolos, como se fosse uma espécie de continuação do Dzi Croquettes no sentido de continuar seu legado, só que, desta vez, nos teatros da tela grande, e isto não tornou a obra menos valiosa, pelo contrário, o diretor soube explorar toda forma de arte. Aqui, trago Féral (2008, p. 11) que, ao trabalhar o teatro performativo, “insiste mais no aspecto lúdico do discurso sob suas múltiplas formas – (visuais ou verbais: as do performer, do texto, das imagens ou das coisas)”: essa é a essência da performance...

Nos discursos do Chão de Estrelas, Clécio e seu grupo criticavam os que desejavam torná-los invisíveis e, ainda dentro deste pensamento, provoco o tema com os estudos de Foucault por entender isso como uma tática social onde as “práticas sexuais, além de problematizar a subjetividade, ou seja, a resistência, transgressão e liberdade como elementos que ajudam a entender a problematização” (2013, p. 1).

Foucault alerta, em seus estudos, sobre alguns segmentos da sociedade que não se encaixariam nos dogmas impostos como verdades absolutas, sempre o discurso politicamente correto sobre o cidadão que, além de discordar, tem suas opiniões próprias e isso é positivo, pois tais discussões amadurecem a sociedade, como mostra o trecho citado abaixo:

Todos os corpos são desarticulados e recompostos, num processo que os dissocia do poder, e que os corpos dóceis não se apresentam dessa maneira por sua natureza, mas em razão de ter passado com sucesso por um processo forçoso de docilização (2005, p. 119).

Ainda dentro da discussão sobre liberdade e sexualidade, performance e resistência, cito o movimento LGBT dos anos 90, novos tempos que se destacariam graças às lésbicas, às transexuais, aos gays e a membros de outros movimentos como o estudantil, o negro e as feministas. Os GLS[6], em seu propósito, abarcavam do movimento feminista ao movimento negro, inicialmente o continha propostas de transformação no sentido de abolir vários tipos de hierarquias sociais, especialmente aquelas relacionadas a gênero e sexualidade. Percebe-se que, até aquele momento, todos os esforços se voltavam para que o cidadão começasse a ser menos “obediente”. Era um processo social que visava melhorias para os GLS e eles, na verdade, queriam mostrar como isso acontecia em uma sociedade doente. A maneira como a sociedade agia serviu bem a este propósito, tanto que foi pesquisada por grandes mentes do século XX. Nesta discussão, destaco Deleuze (1992, p. 220) ao afirmar que as sociedades “funcionam não mais por confinamento, mas por controle contínuo e comunicação instantânea” e a citada “comunicação confinada” foi tentada como proposta pelos militares em Tatuagem e Dzi Croquettes evidenciando uma sociedade alienada e vigilante.

O pensamento de Foucault (2013b, p. 189) é tão esclarecedor quanto o de Deleuze, suas ideias dizem respeito ao “resultado de um discurso que afasta a ideia do sujeito racional para um sujeito transformado e aberto para possibilidades”, assim, é possível a construção do sujeito através do poder da experiência, da construção e transgressão, indicações estudadas profundamente pelo Dzi Croquettes. Para Foucault, a filosofia conduz a um jogo de linguagem entre criar problemas e conceitos.

Quanto ao período é considerado bastante conturbado, tanto social como culturalmente e, por isto, trago Aguilar e Cámara que nos lembra esse período para que compreendamos como era a indústria do entretenimento na época:

Os anos 70 são os da popularização e industrialização da pornografia e se tratava de uma luta sexual-política que tem como campo de batalha os corpos e o prazer, é o crescimento da indústria do entretenimento e lazer: cinema, teatro, é a gestão da política dos corpos e da vida (2017, p. 32).

O Brasil, a partir da República, enfrentou problemas de todas as ordens que amadureceram com a sua trajetória e não tardaria para que um dia eles culminassem em impasses que o impediam de seguir adiante como nação soberana, tais problemas aumentaram sob o comando militar e, assim como os problemas, as soluções andavam juntas, por isto, os anos 70 e o início dos anos 80 ficariam famosos pelos movimentos sociais e culturais, dentro e fora do país, era o grito embargado na garganta pedindo um basta para os problemas e soluções para que o Brasil finalmente seguisse seu trajeto. Nessa turbulência nacional e mundial, produções cinematográficas ganhavam espaço, por exemplo, os “enlatados americanos”, mas outra indústria também se destacaria, a indústria pornográfica, efeitos dos embates que aconteciam em todas as esferas sociais, promovidas pela bipolaridade USA X URSS e a propaganda seria o meio escolhido para a divulgação do mundo naquele momento. Segundo Aguilar e Cámara (2017), o novo era sinônimo de mudanças.

Acompanhando essas tendências sociais, surgiria uma patologia que abalaria o mundo naquele período, em especial, o mundo gay, por ser acusado de propagar o que ficaria conhecido como o “câncer gay”, a AIDS, que viria a ser responsável pela morte de milhares de pessoas. Injustamente, foi atribuída aos gays a origem da doença que, na verdade, afetaria os homossexuais tanto quanto os heterossexuais mas, infelizmente, a sociedade conservadora e homofóbica usaria isto para abalar os gays como justificativa para persegui-los ainda mais.

Tal pensamento é corroborado por Del Priore (2011) segundo quem, o pensamento da época era o de fortalecer a família tradicional. Posteriormente, descobriu-se que a doença era transmitida através do sangue e da saliva. Passado o temor da infecção, as gerações seguintes já não eram mais assombradas pelo fantasma da AIDS pois novos caminhos apontaram para projetos farmacêuticos que culminariam no coquetel de AZT[7] em parceria com o Ministério da Saúde.

Nos anos 90, os simpatizantes GLS aumentaram e, nesse ínterim, surgiria o queer que se consolidaria como um forte movimento defensor das causas civis que não passou despercebido:

Prática política, oriunda dos LGBT, tinham como ideia principal a construção da luta como desafio nos anos 80 e 90 diante da Aids, problema ligado a identificação homofóbica e homogênea que perduram até hoje como um dos pilares de resistência (FOUCAULT; DELEUZE, 2013, p. 194).

O mundo mudava com bons ventos a causa LGBTQI+, porém, é preciso lembrar que a jornada foi árdua, que muito se conquistou, mas foram passos lentos. A luta nunca deixou de ocorrer e cito como um desses percalços o fanatismo religioso que cresce assustadoramente contra os gays. Desde a década de 1960, o Brasil presenciava a multiplicação de igrejas neopentecostais e vivíamos dois tipos de ditadura, a militar e a religiosa. Para contrapor essa onda evangélica cristã, Roberto de Rodrigues interpretava uma freira, que via como uma espécie de signo religioso de um cisma entre a igreja e a sociedade mostrando o poder da religião sobre os corpos. Nessa freira, a sexualidade não seria afetada.

Fotograma 4 − Roberto de Rodrigues − a freira.
Fonte: Youtube

O Fotograma 4 representa exatamente o antagonismo entre o discurso religioso e a performance do artista, de acordo com a sua versão paródica da imagem secular das freiras o que, para a sociedade, era uma falta de respeito. Já o ator pensava em rebater uma sociedade fanática e, assim, fazia o oposto do que os ‘ensinamentos morais” determinavam. Roberto de Farias se utilizava do humor para criticar as instituições sem desrespeitá-las. Nesse “emaranhado” sincrético, Colling (2016, p. 375) nos ilustra o seguinte cenário: “Não somente a Igreja e as parcelas conservadoras da sociedade brasileira negam-se a discuti-la, considerando-a algo promíscuo e atentatório à moral e aos bons costumes”.

Na verdade, o espetáculo não tinha pretensões de ofender e sim de chocar, no sentido de mostrar a religião não como algo que pune, mas sob um novo viés, sob a ótica da arte. Tanto a religião como o patriarcalismo foram fortes marcadores da fé e da territoriedade, e como descendemos de europeus, a reminiscência patriarcal e religiosa forjou nossa ideologia durante séculos. Esse ranço colonial é trabalhado por Hall (2010), que nos alerta para a docilização dos corpos sob o jugo colonial vista como uma “perfeição tecnológica” que perdura até os dias atuais, sinalizando um sistema com 100% de funcionalidade. Esse modelo era baseado na clareza do sujeito em não sair de seu status “coisificado” ou “abjeto”. Em concordância com Hall, incluo Bourdieu, pela semelhança de pensamento, que diz que era como se fosse uma espécie de:

Violência suave, insensível, invisível às suas próprias vítimas, que se exerce [...] pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou do sentimento (2007, p. 7).

Para Bourdieu (2007), essa violência era resultado de um sentimento cujo arbítrio cultural se baseava na diferenciação de grupos, ainda sobre o tema, diz Cysneiros:

Apesar de sua flagrante descontinuidade, exercendo um poder que parece possuir por meio de sujeitos que lhe concedem expressão ao passo que estrategicamente apagam seus rastros ao manifestar a lei da matriz como a essência de seu eu (2014, p. 42).

Diante dessa constatação, Cysneiros (2014) esclarece a relação do poder e do controle em dois elementos fundamentais para o regime: o local e o período dos acontecimentos. A docilização dos corpos já foi trabalhada por Hall (2001) quando se refere à máquina colonial e ao local onde o sujeito estava baseado no positivismo e o resultado foi o medo de se expressar ou o silêncio causado pelo constrangimento, logo, as pessoas não se sentiam à vontade e se calavam.

Quando Butler (2017) alude à ideia de que os corpos falam através de suas performances, ela indica uma poderosa arma política que pode ser usada não só como discurso verbal mas através do corpo. Como o sujeito é politicamente construído, isso acontece pela relação dos objetivos vinculados à legitimação das operações políticas do sujeito e o seu discurso político. Em Tatuagem, percebemos isto nas apresentações dos artistas e na forma como seus corpos dançam nos palcos; os movimentos treinados revelam mais do que corpos dançantes, revelam técnicas com sentido crítico e o público percebe quando questões vêm a tona, como quando Claudio Tovar interpreta um policial e tem um comportamento oposto ao da força policial. Temos, ainda, o embate entre o censor e Clécio Wanderley sobre as cenas de nudismo e, mesmo contrariado, o elenco do Chão de Estrelas apresenta o espetáculo nu.

A linguagem utilizada por eles estava além do verbo, seus corpos dialogavam, protestavam, principalmente, dançavam muito, utilizando a arte como ferramenta política na descoberta de novos horizontes cênicos em paralelo aos projetos cenográficos e performáticos. Para enriquecer o tema, menciono o trabalho de Cohen (2002, p. 111) quando diz que “a performance − que é, como definimos, uma linguagem de interface que transita entre os limites disciplinares − tentaremos situar essa linguagem dentro do universo maior da expressão cênica”.

Trago, ainda, Mignolo por nos esclarecer que não existe “outras maneiras de pensar, fazer e viver”, que precisamos mesmo é mudar a forma como nos vemos nas margens e, para isto, é preciso que as pessoas pensem esse novo modelo de comportamento como um novo “pensar que se desvincula das cronologias construídas pelas novas epistemes ou Paradigmas” (2011, s/p). É preciso por em prática o pensamento descolonizador no sentido de aceitar as novas ideias, dar continuidade aos movimentos sociais, políticos, culturais e de diversidade visando por um fim ao pensamento colonial a partir de ideias como igualdade e justiça. Quando teoriza o pensamento de margem, Mignolo evidencia a fala de nós mesmos, como se fossem nossos próprios corpos, experiências de vida, dilemas e provocações sociais:

A política que sustenta essa atitude é o não comprometimento com a modernidade e seus modos universalizantes, caracterizando-a como uma narrativa entre narrativas, distribuindo o poder e rompendo com a hierarquia (MIGNOLO apud BRYDON, 2007, s/p).

Ainda Walter Mignolo (2007, s/p), ao evidenciar os corpos que estão, a todo momento, sob suspeita, ele lembra de sua perenidade, que o que, de fato, acontece é uma nova forma de linguagem materializada nesses corpos falantes. Os corpos, nas propostas de Tatuagem e Dzi Croquettes, apesar de considerados subversivos, apresentam inovações de enunciação baseadas na coragem de se expor sabendo que, de alguma forma, seriam penalizados pelo teor apresentado. Quando eu digo corpos, me refiro, de certa forma, à utopia de um corpo livre, como pregado por Foucault e a desobediência faz parte dessa utopia, o que fica evidente no discurso dos personagens como se esses corpos estivessem sendo desfigurados. Tais transformações são perceptíveis em Tatuagem quando o corpo hipnotiza o público: ele agora faz parte e se transforma nessa plateia. As ideias do grupo teatral são condizentes com a afirmação de Foucault (1966):

Todas essas utopias pelas quais esquivava o meu corpo, simplesmente tinham seu modelo e seu ponto primeiro de aplicação [...] estava muito equivocado há pouco ao dizer que as utopias estavam voltadas contra o corpo e destinadas a apagá-lo: elas nasceram do próprio corpo e depois, talvez, se voltarão contra ele.[8]

Diante da colocação de Foucault, esse corpo, mesmo controlado, conduz os desejos para que se realizem e, para isto, é preciso duvidar de todo tipo de controle imposto pela norma. Por sua vez, o sistema se fará presente, sempre em nome do bem-estar maior, nem que, para isto, se lance e se faça presente através do corpo docilizado. Os corpos, em Dzi Croquettes, encenam o processo de descontrole em que o ideal não é ser comportado sendo preciso reinventar padrões de comportamentos sociais. Para isso, foi necessário, ainda segundo Foucault, que o corpo reagisse sem a chancela da obrigatoriedade, com o controle da censura sendo agora combatido pelos artistas em cena, que escandalizam e fazem vir à tona os desejos proibidos por mais que fossem instados a fazer o contrário.

Os corpos indóceis do Chão de Estrelas faziam uso da arte para construir algo maior do que as propostas performáticas e, dentro da orquestração da rebeldia, eles produziam novas subjetividades que contestavam a heterotopia constatada por Foucault (2013) de que tudo faria parte da realidade e do tempo em que vivemos. Um exemplo do que aqui se discorre é a utopia do cu na qual tudo é democrático e liberta (tema trabalhado no Capítulo 3). Ainda sobre os corpos “mansos”, em Dzi Croquettes, os corpos “indóceis”, corpos peludos com o uso excessivo de purpurina e o exagero das roupas femininas, na verdade, são corpos sem controle algum. Seus vocais envergonhariam os militares pela feminilidade e o agudo das vozes mas, ao mesmo tempo, aquelas “mulheres” travestidas apresentavam seus tons graves no palco. Assim, o discurso associado à performance tornava aqueles corpos fortes, destacando-se como se fossem uma dualidade que evidenciava aqueles homens como um fenômeno articulado e reconfigurado.

A indocilidade dos corpos é fortemente regida pelas políticas de controle e, assim, ainda dentro da proposta sobre a docilização dos corpos em Tatuagem e Dzi Croquettes, me permito trazer Butler (2017, s/p) não com o diagnóstico pronto deste problema, mas sim apontando para uma espécie de estratégia utilizada quando os diretores dos filmes fazem o uso de códigos que legitimam, justamente, o contrário de um corpo domado, fragilizado. De fato, o que acontece é uma força interior dos personagens tanto em palco, como nas performances apresentadas por eles a fim de legitimar o discurso e, ao mesmo tempo, acabar com as disciplinas impostas sejam elas pelo medo, coação ou censura.

Butler relembra uma diferença em relação a Foucault e se aproxima da linha kantiana no sentido de apontar para uma direção que não seja possível capturar pelo fato de o referencial ainda estar indisponível na construção da linguagem. Por isso, a linguagem dos personagens é múltipla, daí a indisciplina como forma de ajudar a reconstruir o outro lado, pois ela permite uma variedade de formas de se mencionar algo e, ao mesmo tempo, não alude a uma referência feita. Os sujeitos docilizados foram paulatinamente trabalhados no que se refere à sexualidade, às escolhas, ao gênero, ao sexo, ao serem classificados, ordenados, hierarquizados pela aparência de seus corpos e neles não havia as escrituras de suas histórias. Em seus pelos, pele, nas formas não havia registro de quem eram, eles, simplesmente, se tornavam abjetos, suas raízes históricas eram inexistentes, eles não eram lidos ou se distinguiam dos outros, o corpo simplesmente era causa e justificativa das diferenças (LOURO, 2018, p. 69).

Os personagens de Tatuagem eram, de fato, indóceis, seus disparates eram uma afronta contínua contra a utopia. No documentário sobre o Dzi Croquettes, os corpos eram tudo menos dóceis e a disciplina da coreografia contrastava com a indisciplina deles no palco. Eram sujeitos que, mesmo com uma existência estável, eram fortes no sentido de consolidar a união entre a plateia, sua cultura era construída como uma ponte que articulava e almejava a ação e, para isto, faziam uso de suas capacidades performáticas para se inserirem no ideário popular, fazendo parte de sua cultura.




1.2. SE EXISTE UTOPIA, EXISTE HETEROUTOPIA: A ARTE COMO POLÍTICA DE SUBJETIVAÇÃO

Dentro do universo proposto pelos Dzi Croquettes e por Tatuagem, não posso deixar de trazer à tona o pensamento de Rancière (2009) relativo à subjetivação dos personagens tão citada neste trabalho, visto que, nesse caso, a estética da política se opõe a Walter Benjamin, por considerar uma captura da política pela arte, mas o que ocorre é que neste jogo de palavras e signos, tudo faz parte da experimentação na forma como o lugar e o tempo são determinados nas produções.

As subjetivações na vida das pessoas são resultados de como a política participa da vida desses protagonistas (o elenco de Dzi Croquettes e Tatuagem). Geralmente, as relações não acontecem de forma fácil e sim tensas o que, segundo Rancière (2009), é denominado dissenso, ou seja, a desarmonia na igualdade e invisibilidade, inexistindo a capacidade de percepção do outro, visto que, para os militares, os GLS eram invisíveis. Era necessário mudar esse pensamento, logo, o desafio era romper com a ordem política vigente a partir de um novo arranjo de ideias e percepções. A proposta do Dzi Croquettes, nesse cenário subjetivo, era desmantelar e enfraquecer o sujeito homofóbico e controlador figura esta personificada pela polícia e seus cassetetes.

Quando a trupe de Clécio Wanderley e o próprio diretor questionam o establishment, eles o fazem no sentido de mudar a realidade de como os fatos estavam ocorrendo, pois a forma como o país estava sendo administrado era reprovada pela grande maioria dos cidadãos e mostrar que a população estava descontente. Quando o Dzi Croquettes questionava em cena sobre a política, eles tinham em mente uma reconfiguração do comum, da comunidade e tendo o status quo questionado por eles, essa era mais uma chance de provocar inovações no pensamento social.

As rupturas sugeridas por Rancière (2009) norteavam o modelo social, dando à liberdade e, no caso das produções fílmicas, às liberdades civis maior poder de abrangência, afinal, para fazer frente ao controle disciplinar, era preciso a força proveniente dos excluídos políticos e da sociedade. O dissenso de Rancière era responsável pela ruptura das formas identitárias e dos discursos hierárquicos, clarificando os conteúdos e os objetos dentro dessa premissa social; era preciso mudar a forma como as pessoas viam a política, igualmente os objetos a serem percebidos e, dessa forma, a política do pertencimento enfraqueceria seu poder sobre o espaço público. Era preciso dar à arte uma política cujo lema se baseava na inclusão do sujeito abjeto dando lugar a uma nova ordem social.

Em Rolnik (1995), percebo a subjetividade como uma espécie de rede formada por elementos como mobilidade, força, família, sexo, política, cultura, diferenciações que, combinadas com outros elementos já existentes, formam a atração ou a repulsão. No Dzi Croquettes, sentimos essa coesão, essa força motivada, principalmente, pelos laços fraternos entre os amigos, irmãos, uma força sentida nos palcos quando eles passam a mensagem de serem não meros reprodutores, mas formadores de opinião com doses de sarcasmo e humor. A subjetividade, em Tatuagem, se faz presente no elo que une o elenco do Chão de Estrelas, nas suas divergências, suas alegrias, seus conflitos e o “desbunde” dentro ou fora dos palcos.

O que nos move não são forças simpatizantes com o sujeito e sim o contrário, pois, a partir do momento em que o cidadão sai de sua zona de conforto pelo mal-estar oriundo de forças advindas do meio ambiente ele é obrigado a lutar por algo que lhe dê alegria, que lhe dê prazer, a viver de acordo com as possibilidades pública e privada de nossa consciência. Nos filmes Tatuagem e Dzi Croquettes, percebemos o tempo todo que eles almejam o sucesso e que, por trás desse desejo, existem forças que tentarão impedir, a todo custo, que isto aconteça, subentendendo-se essas forças antagônicas como as normas e regras disciplinadoras.

A diferenciação de estados emocionais promove mudanças e transformações em nossa subjetividade e, a partir disto, novas combinações surgem e essa era a ideia defendida pelos atores em seus espetáculos, a de mudar a mentalidade das pessoas para que não parecessem sujeitos vazios doutrinados por uma utopia nociva. A subjetivação da contemporaneidade se perfaz em cima dos trabalhos que combatem essas práticas, em que o sujeito é mais do que um corpo que obedece, ele contesta tais propostas. Ainda segundo Rolnik (1995), na subjetividade, há uma entrega, nela o discurso se faz presente não só pela apresentação nos palcos, mas também pelo silêncio, pela contestação e pela razão e isto nos torna fortes e seguros.

A forma como o teatro era apresentado no Brasil começou a mudar na década de 1940 (THÜRLER, 2011), mudanças que foram significativas pois o tom que era apresentado nos palcos até então obedecia aos velhos ditames cômicos do teatro lisboeta. O teatro nacional, em algum momento, precisava ser reinventado, a beleza artística e cultural precisava resgatar seus momentos de glória e, então, a ordem era renovar o antigo e dar lugar ao inédito, ao próspero. Nessa onda de mudanças, chegamos aos anos 70 com todas as turbulências políticas que o país atravessava e o Dzi Croquettes surge com uma proposta diferenciada em que o escracho e o sarcasmo seriam suas principais ferramentas. Através de recursos inéditos, como o exagero das luzes, do cenário, das maquiagens, dos corpos magros, peludos e produzidos eles, defensores de uma política que olhasse para as pessoas GLS, à sua maneira, se destacavam no cenário nacional.

Era uma forma de conscientizar as pessoas sobre direitos, liberdade e desejos. Com sua estética arrojada o grupo trabalhava mudanças comportamentais e Issa soube trabalhar esses elementos de transformação através do rompimento radical proposto pela historicidade do Dzi Croquettes. Em sua produção, a política é questionada sobre a hegemonia da masculinidade. Sob a tutela de desmantelar a heteronormatividade, eles almejavam não só o publico masculino, mas sim gays, lésbicas, bichas, pois, assim, eles dilatariam as normas e flexibilizariam os corpos dóceis.

A proposta política adotada em Dzi Croquettes traz um ideal revolucionário em um período em que esse tipo de pensamento era proibido, mas, mesmo assim era preciso abrir mão dos desejos para fortalecer o pensamento contraventor, reforçado pelo pensamento gay. Os Dzis formavam um grupo além de seu tempo, com sua maneira de ser eles conscientizavam as pessoas, através de experiências pessoais, contra o pensamento masculino tóxico bem como pela promoção da estética gay. A politização à qual me refiro nos filmes ocorre no sentido de mostrar que as pessoas podem ser felizes bem como ter seus desejos vividos a partir de ideias que reforcem o pensamento ou seja a “arte do viver, é um modo de politizar e historicizar as experiências de masculinidades e mostrar que “a forma como nós fazemos as coisas não é a única forma de fazê-las pode causar um salutar abalo” (WEEKS, 2010, p. 45).

Tatuagem traz a proposta dos corpos com a subjetividade da política, em uma posição que desvela comandos que não se aplicam a si, para eles a plenitude da vida se baseia na fraternidade entre o grupo, o sexo, as drogas e o escárnio “dos tiranos”, isso fica evidente em seus shows exagerados onde a principal ideia é justamente o deboche surreal. Nesta proposta, temos a política dos corpos como linguagem com cenas de nudismo e, aqui, o nu independe de espaços físicos, a nudez é indiferente ao local onde ocorre, principalmente, no palco.

O Chão de Estrelas, na década de 1970, era visto como um grupo de gays que incomodavam a sociedade “de bem” e as forças armadas pela desobediência, assim, na proposta do filme, a política da provocação de forma persistente e hilária era o principal fator que fazia de Clécio Wanderley e sua trupe uma ponte para a subversão. “Em seu mundo”, os personagens de Tatuagem vivem em uma espécie de universo próprio, inspirados no grupo Vivencial Diversiones, do período entre 1972 e 1981, e Lacerda soube trabalhar com o sistema controlador que era seguidamente sabotado por artistas que combatiam a disciplina militar.

A resistência política vai além dos corpos que se recusam a obedecer ordens superiores contra a sociedade civil; nela há uma explosão anarquista alegre e colorida e, mesmo com todos os problemas que eles enfrentavam para se apresentar, usavam do humor como a principal ferramenta de fortalecimento; como dito anteriormente, a política dos corpos não fica somente no embate das ideias políticas, ela acontece mesmo em um romance entre um soldado raso e um diretor transgressor cujo desejo acontece à revelia das regras heteronormativas, como uma tentativa de enfraquecer a utopia defendida pela herança patriarcal. As simbologias do filme convidam para que o espectador faça parte da poesia que permeia essa realidade em nome dos poemas libertários e da tendência política. A singularidade de Tatuagem nos remete aos show noturnos carregados de uma linguagem ideológica nos quais, com suas nuances simbólicas, eles se unem e dão o tom do espetáculo que diz respeito ao combate à sujeição e à invisibilidade a que os gays são acometidos. São sujeitos que fazem parte de uma parcela da sociedade perseguida por ser identificada pelo pensamento homofóbico, para o qual, os sujeitos gays “são desprovidos” de representação, acuados pelo medo, silenciam para não serem agredidos, por isso se “fecham” para o mundo. Tatuagem influencia no sentido de albergar esse indivíduo considerado desviante da norma, e os shows do Dzi tentam conscientizá-lo e trazê-lo para si com novos significados e representações.

A construção polifônica, em Tatuagem, serviu de carro condutor unindo as vozes dos personagens aos dilemas diários com discursos situados e com as imagens dos cenários, revelando uma política não só voltada para a elite, mas igualmente voltada para as margens, para o Chão de Estrelas cujos personagens davam voz àquele mundo que os prestigiava, proporcionando diferentes visões do evento. Os conflitos ideológicos, pessoais, políticos e culturais constroem uma importante simbologia que determina e sustenta as relações de poder que, inseridas no filme, dão às estruturas sociais diferentes localizações sociais, materiais e simbólicas.

O fato é que, a partir da dissimulação dos personagens, Tatuagem expõe estratégias narrativas que diferenciam o exótico do senso comum, uma estratégia utilizada por Lacerda como uma maneira de fazer política. Ao deslegitimarem o público GLS, os militares o acusavam de transgressor e subversivo, mas, na verdade, o Chão de Estrelas se fortalecia, mesmo sendo acusado de indecente e “a práxis do impossível junto à epifania da desordem” acontecia.

Os personagens dos filmes Dzi Croquettes e Tatuagem vivem realidades parecidas, embora um aconteça em forma de documentário e o outro seja formatado como filme: o lugar é o mesmo e o período muito próximo, quando o Brasil estava mergulhado em uma ditadura militar que durou duas décadas (1964/1984), mas esse foi um período complicado para quase todos os países do mundo, quando, envolvidos na bipolarização EUA-URSS, o comunismo era visto como uma ameaça aos capitalistas que endemoniavam esse sistema político por defender a partilha dos bens entre a sociedade como uma sociedade comunal. A esquerda, em algumas regiões do planeta, sempre foi forte, e no nosso caso, a América Latina simpatizava com o pensamento comunista e os americanos não tardaram a acionar os comandos de quase todos os países latinos para fortalecer suas resistências ideológicas e políticas. Sob o comando dos militares, nossa ditadura perseguia, principalmente, estudantes, artistas, sindicalistas, movimentos populares e os simpatizantes do ideário marxista. A partir de 1964, a perseguição se sistematizava contra os homossexuais, ocasionando algumas mudanças no comportamento dos gays como o direcionamento dos GLS para espaços públicos voltados especificamente para eles (OLIVEIRA, 2015).

A classe artística conhecida pelas produções culturais e intelectuais também estava na mira dos militares e os Dzi Croquettes sentiram na pele o cerco dos militares contra os artistas. Em Tatuagem, Lacerda soube explorar essa violência na forma como apresenta a rigidez do quartel, as perseguições e o cancelamento das obras teatrais. Toda a política de violência dos militares era respondida com a política da resistência sendo as mudanças políticas e culturais fortalecidas pelos movimentos universitários que acontecia em paralelo às “revoluções sexuais” que, por sua vez, eram vistas como afronta pelas famílias tradicionais da sociedade brasileira.

Nesta dissertação, a arte é trabalhada em associação à política do desejo de corpos dissidentes, não apenas corpos travestidos em cujos discursos e performances há todo um trabalho de construção do corpo que os fortalece diante da obrigação de serem algo que não são; através da catarse de empoderamento dos corpos, as chances de controle sobre si diminuem. Aqui proponho corpos não frágeis nem docilizados, mas corpos empoderados, fortalecidos pelos laços criados por eles. Não seria ingênuo de minha parte dizer que eles viveram a sua utopia, pois, de fato, ela ocorreu e seus corpos foram a prova disso. Para dar suporte ao meu pensamento, cito Foucault por ver o corpo utópico como algo transformador: “Para que eu seja utopia, basta que seja um corpo. Todas essas utopias pelas quais esquivava o meu corpo, simplesmente tinham seu modelo e seu ponto primeiro de aplicação, tinham seu lugar de origem em meu corpo” (FOUCAULT, 2013a, p. 11).

O corpo na sua materialidade projeta o desejo de produção e realização das fantasias, ele desafia, ele luta, ele se fortalece, e aqui cito Luana Marquiori quando identifica os sujeitos no sentido de que eles “podem parecer se sobrepor, como no paradigma metafísico, mas isso não acontece completamente já que um mesmo indivíduo − uma mesma substância − pode ser o lugar de múltiplos processos de subjetivação” (2009, p. 816).

Nesse processo de arte subjetiva, Deleuze e Guattari (1997, p. 196) explicam a multiplicidade de conjuntos de fatores como sendo um corpo sem órgão, podendo o sujeito ser único e plural e, sobre essa afirmação, lembro que um “corpo sem órgão” pode ser ou não um novo ser que varia no tempo e espaço, e Deleuze, com grande propriedade sobre o assunto nos lembra: “uma meada, um conjunto multilinear”.

Os personagens de Tatuagem e de Dzi Croquettes eram assim, “corpos sem órgãos” que se multiplicavam, eram singulares e se tornavam diversos. No caso do Dzi Croquettes, quando eles se apresentavam com “movimentos bem coreografados e os corpos seminus, com passos marcantes, executados de maneira disciplinada e, ao mesmo tempo, leves, proporcionava a quem assistia o confronto de sensações” (Lennie Dale), as pessoas pareciam estar em um delírio coletivo devido ao efeito que eles exerciam sobre elas, sua energia parecia um êxtase coletivo, seu poder parecia hipnotizar o público. O grupo, ao mesmo tempo em que era influenciado, também inspirava e influenciaria vários artistas no cenário nacional. Nesta troca de experiências e influencias destaco Os Mutantes, Secos e Molhados, Novos Baianos que serviriam de inspiração para novas produções musicais e artísticas graças às contravenções que inspiraram e criaram uma cultura pop mais fortificada, terreno fértil no qual surgiria o grupo As Frenéticas:

Fotograma 5 − Das Dzi Croquettas de Wagner Ribeiro às Frenéticas
Fonte: Youtube

Os movimentos coreografados por Lennie Dale evidenciavam a garra e a leveza masculina que a dança proporciona e, em seus passos delicados, o grupo mostrava a arte com “a força do macho, ao passo que não se perdiam os movimentos de leveza da fêmea”. Dessa forma, eles indicavam as várias formas de se fazerem presentes através dos treinos; Lennie Dale via a arte como uma forma de influenciar não só a alma da pessoa, uma maneira de ver, através de seu público, as futuras gerações que seriam influenciadas pelo jeito inovador de fazer da arte performática a sua referência. Eram ideologias que surgiam, mentalidades antes proibidas que agora começavam a despertar nas pessoas o senso crítico e, para ilustrar esse cenário, indico Rolnik (2006, p. 2) que, ao citar as mudanças devidas ao poder de persuasão e influência diz que não “há então porque estranhar que a arte indague sobre o presente das mudanças que se operam na atualidade”. Quando trato da subjetividade em Rolnik, lembro que não se trata de uma particularidade ou de algo individual; na verdade, me refiro ao “modo como atravessam seu corpo as forças de um determinado contexto histórico”, ainda segundo a autora (2006, p. 22), a processos que ocorrem como algo que assume um posto em uma ordem que propicia elementos para sua essência. É preciso compreender que é importante entender o passado e suas nuances para que não repitamos os mesmos erros no presente e, por isto, toda arte revolucionaria é bem-vinda ao público.

Entre percalços e acertos trago, no Fotograma 6, os personagens do Chão de Estrelas como um produto do meio, pois, à sua maneira e dentro de suas possibilidades, eles operam em um universo de cores, passos cadenciados e poesias ensaiadas, danças e músicas entoadas, ou seja, fazem do palco a sua casa.

Fotograma 6 − Personagens do Chão de Estrelas “não utópicos”

Fonte: Globoplay
As propostas dos personagens revelam corpos desnudos, provocantes, não colocando em cheque a masculinidade, mas mostrando-a sob outro foco, tendo como objetivo sair do padrão e desviar-se da norma tendo em mente que as mudanças não poderiam ser interpretadas como uma afronta e era preciso descobrir novas práticas de provocação. Tatuagem é um filme fruto de convergências e inspirações, cuja preocupação foi a de construir uma realidade não só pautada no temor policial e sim na sagacidade de homens que tiveram a coragem de se expor e falar o que muitos cidadãos desejavam mas não o faziam por medo de serem perseguidos. Esse grupo existiu, em Olinda, se chamava Vivencial Diversiones[9] e foi a inspiração para criar o Chão de Estrelas para que ele cumprisse seu papel narrativo e construtivo. Dentre seus integrantes, os protagonistas Clécio e Fininha, criariam, nesse cenário caótico, uma harmonia que abriria novos horizontes possibilitando um futuro diferente.

A sociedade puritana estava a favor da erradicação através de métodos de limpeza dos “degenerados”, o que solucionaria o problema dos “desviados” com uma saída que não fosse funesta e sim legal, o que ocorre de fato é que a homossexualidade em nosso país foi e ainda é associada como maleficio para a sociedade: sodomia, desvio, doença, pecado nefando, crime contra a natureza, viadagem, frescura. Para legitimar a manutenção do preconceito, os castigos eram: apedrejamento, decapitação, enforcamento, afogamento, queimaduras, despedaçados na boca de um canhão (MOTT; CERQUEIRA, 2001).

Nota-se que tanto o grupo real como o ficcional tem o mesmo pensamento quando o assunto se refere a ganhos de lucro. O capitalismo não os enxergava como “desnecessários”, mesmo sendo um público indesejável, pois eles tinham poder de compra, tinham capacidade de produzir riquezas e poderiam realizar seus desejos pelo poder econômico. Em relação a isso, é pertinente trazer o pensamento de Preciado ao esclarecer que, nos processos da subjetivação, o sujeito é carregado de elementos da doente sociedade utópica:

Está implícito um novo conceito de corpo: corpo máquina (Deleuze-Guattari), plataforma tecno-viva (Donna Haraway), “corpo performativo” (Judith Butler), em todo caso, um corpo que se constitui em relação com o inorgânico, com a eletricidade e o feixe de luz (2017, p. 12).

Segundo a autora, não existe um manual de funcionamento sobre o corpo: somos como um “corpo sem órgãos” e desviantes, temos uma identidade própria, uma representatividade e por isto somos um experimento único, dando a entender um “tratamento para despatologizar” segundo Deleuze (1990, p. 32). Esse corpo não utópico, ele pode ser sem órgãos e ser representado sem ser identificado, corroborando com Deleuze e com Foucault que dizem que esse corpo utópico “deixa de ser um corpo bem organizado, facilmente delimitável, para tornar-se paradoxal, “incompreensível, penetrável e opaco, aberto e fechado: corpo utópico”. De fato, o que há é um corpo contemporâneo com desejos envolto em um turbilhão de desejos, alegrias, um corpo que desafia os limites, está sempre aberto as mudanças.



2 DZI CROQUETTES: RETRATOS DA TRANSGRESSÃO

O papel do Dzi Croquettes e sua importância no cenário artístico foi fundamental para forjar um novo estilo de apresentação, logo, o resgate da memória é relevante para entender a proposta do grupo através de um comportamento que rompia as normas, em meu caso, por imagens que mostram a suavidade dos elementos utilizados por eles como algo que fazia não só parte de si, mas de um todo e graças aos depoimentos prestados neste documentário.

O valor deste trabalho se deve aos depoimentos que enriqueceram a obra, pois foi preciso olhar o passado para descrever o presente, e graças ao elenco estrelar que deu vida à obra de Tatiana Issa. O Dzi Croquettes surgiu como um produto do meio forjado pela realidade da época, principalmente pela ideologia da contracultura e faz parte da memória de um período graças à afetação pois, segundo Thürler (2011), eles “abalavam as marcas”, mas o que ocorreu, de fato, foi o surgimento de novas propostas comportamentais nas quais “o gênero era mutável, múltiplo e não apenas masculino e feminino. Eles implodiram a constituição da masculinidade quando ressignificaram o papel das mulheres e bichas em corpos lisos ou peludos, fora de forma ou magérrimos.

No contexto do Dzi Croquetes, a complexa malha social era formada pela repressão exagerada que, tinha-se a impressão de que duraria por muito tempo, mas duradoura mesmo foi a vontade do grupo de importunar e, para isso, precisavam da aceitação do público, como confirma Ciro Barcellos que atua desde a década de 1970, e continua a dançar nos palcos, sua sensualidade contrastava com o AI-5, responsável por censurar mais de 500 filmes, 450 peças teatrais e em torno de 1000 letras de músicas (GREEN, 2000, p. 391; NAPOLITANO, 2011). O Fotograma 7 retrata o exato momento das duas realidades no Brasil:

Fotograma 7 − Entre coturnos e saltos altos.

Fonte: Youtube (2009)
Percebemos duas realidades, no contexto do Fotograma 7 em que o personagem de Ciro[10] afrontava a nova ordem brasileira e, nesse disparate o grupo anunciava seus shows como a mistura de um reino de fantasia onde a sensualidade estava na “bicha louca” despudorada vestida de mulher e em todos os adornos que o figurino exigia e outra realidade em que as leis militares ofuscavam o brilho da utopia. Sobre esses embaraços há depoimento de Marilia Pera sobre várias situações relatadas como uma realidade distópica regida pelo abuso do rigor: “o cidadão não tinha direito a nada, tudo era proibido, éramos escravos da ditatura”.

Até hoje, a disciplina é um tema que intriga os estudiosos e, dentre eles, cito Foucault (1988) por “sugerir que espaços, como hospitais, quartéis e as prisões foram os responsáveis por vigiar e disciplinar os corpos”. Já Preciado (2014) diz que “na contemporaneidade e/ou pós-modernidade, o discurso médico não é mais o único a legitimar e normalizar os corpos”. Percebe-se uma disputa pelo controle do corpo através das mais variadas formas de controle, o que mostra que mudam os tempos, mudam os personagens, mas a supressão da liberdade é sempre a mesma: violência física ou psicológica.

Ainda dentro do contexto da ditadura, Morando (2014, p. 53) menciona que o regime “aperfeiçoou as práticas de censura já existentes no Brasil antes mesmo da ditadura civil-militar [...] pela ESG e SNI[11] através de ideólogos conservadores, onde a homossexualidade era uma ‘pratica degenerativa!’”. Era preciso dar uma resposta à altura e a ideia foi inovar no sentido de maior participação da população GLS, como lembram os depoimentos no documentário do Dzi Croquettes. Na truculência do AI-5, o cidadão “viraria produto”, relata Marilia Pera por ser sido “atacada no teatro, onde espancaram e colocaram as pessoas nuas na rua”.

Nesse cenário truculento, o Dzi Croquettes[12] surgiu como uma alternativa cômica nascida do antigo teatro, com um humor escrachado, rebolando de forma a serem invejados esbanjando carisma e cativando o público, elementos primordiais para alcançarem uma carreira meteórica. O Fotograma 8 representa um dos primeiros momentos do grupo no início da carreira:

Fotograma 8 − Dzi Croquettes nas primeiras aparições

Fonte: Revista Rolling Stone/1972
A imagem é emblemática pois reúne seus integrantes no que é considerada um dos primeiros registros da formação original; eram alegres e ao mesmo tempo ácidos por darem voz aos considerados abjetos.

A abjeção é o espaço da dessemelhança e da não-identidade. Apontar o monstruoso, o abjeto, funciona como um poderoso aliado do que Foucault chamou de sociedade panóptica, na qual comportamentos polimorfos são extraídos do corpo dos homens mediante múltiplos dispositivos de poder [...] A nomeação do monstro alivia a ameaça interna que é co-estruturante do homem (VILLAÇA, 2006, p. 74).

O público “invisível” do Dzi Croquettes se adequava aos conceitos citados pela autora apontando para um viés de que não eram descartáveis nem inferiores e muito menos degenerados, híbridos: eram pessoas com vozes, que queriam estar presentes e ser vistos. O grupo tinha a consciência de seu papel e sabia que seria uma espécie de porta-voz desse público. Não demoraria para o Dzi Croquettes ser reconhecido como ícone de contestação contra o sistema, utilizando a gozação e o despudor nas contestações politicas como defesa. De acordo com Duse Nacarati, “eles criticavam as instituições com humor” e suas ideias proporcionaram novas formas de expressão, como afirma Silva: “Anos de ouro, descortinando horizontes, abrindo fronteiras [...] prenhes de fantasias esfuziantes, transmitidas pela televisão, em cores, alucinados anos, com seus magníficos desfiles carnavalescos e tigres e tigresas de toda sorte” (NACARATI, 2017, p. 13).

O que Silva (2017) nos lembra é que, mesmo sob o olhar vigilante, as apresentações inovavam em todos os sentidos, os artistas, sagazmente, se beneficiavam com a nova proposta sem despertar suspeitas e, assim, as artes, os costumes, o novo visual cênico era beneficiado pelas dissidências, preservando as identidades e causando “alvoroço”.

Benedicto Lacerda dizia que o Dzi Croquettes era uma grande família e que, nela e no grupo, ele fazia o “Old” e a sobrinha. Para Wagner Ribeiro, que vinha de uma família grande, os Dzis eram seus irmãos. No palco, ele dava vida a Silly (mãe); Bayard Tonelli era “bacia Atlântica”, a tia; Rogerio de Poly era “Pata”, a filha; Ciro Barcelos era “Silinha” e também a filha; Lennie Dale era o pai; Paulo Bacellar era Paulette ou Letinha; Carlos Machado, ou Carlinhos, era “Lotinha”; Reginaldo de Poly era a “rainha”; e Roberto de Rodrigues era a Tia Rose, irmã da mãe. Os sobrinhos eram Benedicto Lacerda, a Old City London; e Claudio Tovar, a Clô. O Fotograma 9 representa esse momento família.

Fotograma 9 − A família
Fonte: Revista Brasiliense. Disponível em: http://teo-jcteo.blogspot.com/2013/10/dzi-croquettes-by-teo-jcteo.html




No Fotograma 9, percebemos como era essa relação. No início o grupo era formado por 13 homens que estavam longe dos padrões da moda, das etiquetas, mas com uma beleza peculiar, única. O convencional definia a orientação dos sexos dentro do conceito de família tradicional mas, para eles, isso inexistia. Eles eram doces, sensíveis e Wagner Ribeiro confirma isso quando diz que “só o amor constrói” e esse era o elo que mantinha o grupo como uma família “diferentona”, mas não menos amável. Em agosto de 1972, se apresentaram no Teatro 13 de Maio (São Paulo) para o espetáculo chamado “Gente computada igual a você”. O show foi apresentado, inicialmente, na boate Ton Ton e depois passou para o Teatro 13 de Maio; o título da apresentação foi inspirado em uma das falas carregadas de duplo sentido e seus diálogos saíam do tradicional e, para corroborar com o tema, menciono Lobert, para quem os diálogos encantavam a plateia, que cita um trecho:

Nem senhores, nem senhoras

Gente dali, gente daqui

Nós não somos homens, também não somos mulheres

Nós somos gente [...] gente computada igual a você

Vocês querem uma flor, nós temos

Vocês querem uma porrada, nós também temos (2010, p. 48).

Para Lobert (2010), esse seria o ponto de partida para projetar o Dzi ao estrelato não só por palavras, mas também pela forma carismática quando se dirigia ao seu público, pois suas performances evidenciavam a felicidade sem culpa de um homem fantasiar o uso de roupas femininas. No início, as ideias foram surgindo e não tardou para que eles se encontrassem, no primeiros momento, em mesas de bares cariocas, e logo colocariam em prática o projeto de suas vidas. O nome do grupo foi inspirado em um programa da tv americana chamado “The Croquettes”, do qual eles pegaram emprestado a sonoridade transformando The em Dzi e o nome croquete em português em alusão ao salgado que eles estavam saboreando significando que eles eram carne que comia carne e surgiu o nome “Dzi Croquettes” e com esses ingredientes culturais não tardaria para o estrelato acontecer, como mostra o Fotograma 10.

Fotograma 10 − Primeiras aparições do Dzi Croquettes (1972)

Fonte: Youtube (2009)
A beleza estética do Fotograma 10 vai além das lentes de quem a capturou, revelando as nuances e a extravagância como formas escolhidas por eles para mostrar ao público o espetáculo que viria pela frente. O Dzi ousou e deixou um legado não do ridículo, mas de algo diferente para a época, pois o conceito de erro não os intimidava, eles não se preocupavam em acertar ou errar e sim com a produção, o fazer, o saber e esta foi a forma de chamar a atenção, e conseguiram. Despertaram para as grandes casas noturnas onde predominava o público GLS. É interessante notar as mudanças propostas pelo grupo e sobre isto trago Cysneiros por esclarecer a ideia de uma nova perspectiva ao dizer que:

Os Dzi Croquettes certamente deram expressão aos seus afetos marginais e ao fazê-lo romperam com a moral da sociedade de sua época e produziram uma nova realidade. Eles se permitiram o atravessamento e modificação por afetos que deram origem a novas formas de fazer teatro, de conceber a masculinidade, a feminilidade, o exercício da sexualidade (2014, p. 51).

Com Cysneiros (2014), percebemos o início de novos tempos com o público mais perto, deixando para trás décadas de apresentações baseadas no velho teatro dos dilemas sociais. Os Dzis sabiam que tinham um papel a desempenhar junto à comunidade gay e um destes papéis era dar amparo aos considerados abjetos mostrando que eles não estavam mais sozinhos, que, então, eles tinham lugar e visibilidade nas mídias da época, principalmente, no teatro onde as coisas aconteceram rapidamente e com maior intensidade. Em um dos encontros com Luiz Carlos Miele, dono de uma boate chamada Monsieur Pujo, ele e Lennie Dale convidaram Wagner Ribeiro para compor o grupo. Dale dizia que era como se existisse “uma força de vontade” força esta que seria vista, posteriormente, nas incansáveis horas de treino quase que obstinadas. Tamanho desempenho foi citado por Toledo (2015, p. 16) quando ele diz que os “ensaios [...] percorriam dez horas diárias dispostas em aulas de danças, técnicas de palco e tudo o mais que o viajante trouxera em sua bagagem de corpo”.

Percebemos, na fala de Toledo (2015), que havia um preparo em relação às apresentações, sendo impensável a ideia de não estar preparado física e psicologicamente para um show daquele porte. O segredo para o sucesso eram as técnicas que Dale ensinava ao grupo mostrando novas formas de linguagem corporal e cênica. Tais mudanças propiciavam condições de trabalhar reforçando o desejo de fazer a diferença e, posteriormente, no teatro Monsieur Pujol, o Dzi começa a despertar para o estrelato.

Nas recordações, em particular de Ney Matogrosso, o “balançar das asas gigantes das borboletas[13] era um espetáculo à parte” e neste comentário, o cantor dá o tom quando se refere ao ritmo da dança: eles “voavam” coloridos com suas roupas embalados pela trilha sonora de Richard Strauss com “Assim falou Zaratustra”. A cena é inesquecível, ainda mais sob a performance de Wagner Ribeiro, pela leveza do voo, como mostra o Fotograma 11.

Fotograma 11 − As borboletas
Fonte: Youtube (2009)
O Fotograma 11 revela a androgenia, a suavidade, a ousadia do grupo, em uma época em que esse tipo de apresentação beirava o ilícito, pois a ideia das borboletas era de voar no sentido de dizer às pessoas que elas também podiam ser livres, ir além do condicionado que, nesse voo, permitia-se a diversidade, o amor, a alegria de se ser o que se deseja sem medo de perseguição.

Completa a fala de Ney Matogrosso, Amir Haddad quando diz que eles “pisavam duro, dançavam como macho vestido de mulher com sexualidade dúbia”. Concordando com Haddad, Jorge Fernando dizia que eles representavam um novo estilo de ser, de se apresentar, de encantar, que eles eram “a mistura do macho com peruca que voava” e o resultado disto era a plateia lotada. Miguel Fallabella diz que eles foram “o símbolo de uma era, eram machos, fêmea, sexys, extremamente engraçados”.

Associado ao pensamento de Fallabella, cito o trabalho de Silva onde ele complementa a ideia de os Dzi lutarem contra a heterotopia:

Rompem e/ou ressignificam práticas de uma educação conservadora, sexista e heterocentrada, que ambicionava forjar homens másculos, viris, aptos para atuarem no espaço público − lugar historicamente atribuído aos homens brancos e heterossexuais (2017, p. 29).

Para Silva (2017), o grupo criou novos arranjos cênicos cuja capacidade exploratória imaginativa permitia ao artista anarquista se posicionar contra a censura da arte. Concordando com o autor, o renegado, o subversor também é visto por Cohen (2002) como um libertário identificado cujo desejo é o resgate da independência através da criação.

O Fotograma 12 representa exatamente como o grupo era criativo, engajado e, principalmente, caricato e defendia uma viagem que ultrapassasse a barreira pré-determinada para um novo espaço em que a alegria vinha dos corações, a inteligência determinava o ser sem ser ridículo, deixando todo esse ranço proibido para os militares.

Fotograma 12 − As internacionais
Fonte: Youtube (2009)
O jeito “Dzi” de ser era caracterizado por corpos masculinos magros cheios de energia fortemente marcados pelo excesso de maquiagem colorida. Os contornos dos personagens no Fotograma 12 revelam como o masculino e o feminino podem ser harmoniosos no mesmo corpo e anunciavam algo híbrido, a mescla de homem e mulher. Acerca deste corpo sem adversidades, cito o trabalho de Freitas (2017, p. 90) que assim caracteriza os Dzi: “‘cidadãos rebolativos’”, seus corpos foram marcados, valores foram agenciados por uma vontade de saber-poder que tentava capturá-los numa gramática das novas identidades sexuais emergentes naquela década”. Em suas palavras, ele evidencia o público que, independente de “feminilizados” ou “masculinizadas”, se identificava com eles, o que era notório pelo êxtase, espanto e pelo frenesi para com os ídolos.

O Dzi Croquettes chamava a atenção pelo gingado, pela sensualidade esguia e pela performance[14], independente da caracterização, dos diferentes figurinos inspirados nas grandes personalidades da história[15], e tais mudanças comportamentais influenciariam os movimentos sociais baseados na dança, música e no fim do preconceito.

Regina Chaves (ex-Frenética) lembra que “eles eram inteligentes, falavam vários idiomas” e, logo, fariam uma revolução linguística e corporal. A maioria dos integrantes falava inglês e francês, o que vemos logo no início do documentário quando Wagner Ribeiro diz “Good evening para os que falam inglês, Bonsoir para aqueles que falam ou pensam que falam francês…”. Não só o corpo se manifestava, mas a linguagem também era um dos principais temas do Dzi Croquettes visto que, através de jeito incomum de se comunicar, eles criavam o seu próprio vocabulário, como menciona Lobert:

Inventavam uma linguagem doméstica sempre acompanhada de um forte tempero de “meu amor”, “maravilhoso”, com um calor humano na entonação que beirava ao exagero. Utilizavam ainda sempre o pronome feminino − ela − para se referir a qualquer pessoa, homem ou mulher (2010, p. 103-104).

As gírias foram surgindo e eram cada vez mais pronunciadas por eles no palco, podendo ser positivas ou negativas a depender do contexto em questão, do tom da voz, do timbre etc. Um exemplo dessas gírias que era muito usado, lembra Miele, era quando eles falavam “Chama o Zé!”, o que faziam no sentido de admiração ou de exclusão. Eram formas de se fazer entender para a cena GLS da época.

Os integrantes do Dzi Croquettes, à sua maneira, tinham particularidades que só diziam respeito a eles, como o ingresso de cada um no grupo, entre eles destaco Claudio Gaya, lembrado por Luiz Fernando por ser “muito inteligente; com um olhar mudava o contexto e transformava tudo em piada”. O compromisso do ator com o Dzi Croquettes era manter a união entre os integrantes como uma família, pois a união aumentava o ritmo do grupo. No Fotograma 13 segue um desses momentos.

Fotograma 13 − Claudio Gaya

Fonte: Youtube (2009)
Gaya (Fotograma 13) era a personificação da bondade e, para ele, “As pessoas se identificavam com o coração da gente que estava aberto no palco e que não havia quem não mergulhasse”. A proposta do Dzi Croquettes em relação ao teatro e ao corpo era dar um novo formato, ou seja:

O teor político do teatro − político no sentido amplo − e a discussão sobre o comum vão aparecer no estudo que debate o pensamento do filósofo francês Jacques Rancière. Ele trata de algumas noções centrais de seu pensamento, como o regime estético das artes, a partilha do sensível, as ideias de resistência e de dissenso, bem como a emancipação do espectador − no caso, a pressuposição de um espectador antecipado de antemão (MOSTAÇO, 2018, p. 337).

Para Mostaço (2018), o corpo precisava se desamarrar e reescrever uma nova história e essa escrita não poderia mais ser condicional ou nostálgica nem conservadora ou melancólica, ela deveria ser leve, sem o peso do tradicionalismo. Agora o corpo deveria ser esteticamente belo, experiente e voltado para as artes, ou seja, “aparecer e desaparecer; criar a si mesmo e já não ser” como diz Foucault (2011, p. 946) para quem as artes se alternam e se complementam em uma idealização das artes tendo o homem em seu centro.

Ainda falando de arte, a caminhada do grupo foi afortunada, principalmente pela experiência de seus integrantes. Referindo-me a Wagner Ribeiro (a mãe), ele era do interior de São Paulo e, ao se mudar para o Rio de Janeiro, estudou medicina, mas se desencantou com os estudos e se interessou pelo teatro. Ao “se assumir” passou pelo processo de enclausuramento. Regina Muller (ex Dzi Croquettas, hoje antropóloga) relembra que ele fazia o papel de um “profeta”, pregava e dizia que em vez de lutar com armas apresentava a proposta de lutar com arte e falava sem ser piegas. No Fotograma 14, um de seus personagens mostra a sua força interior.

Fotograma 14 −A mãe – Wagner Ribeiro

Fonte: Youtube (2009)
O Fotograma 14 revela um homem com talento de sobra cujo humor e sagacidade vindo das letras o privilegiavam a ponto de compor algumas músicas para o recém-formado grupo dissidente do Dzi Croquettes, As Frenéticas, para o qual compôs duas músicas: Vingativa e Crazzy Darling.

Não menos importante e carismático, destaco, no papel de Lotinha, Carlinhos Machado que, segundo Claudia Raia, além de ser “dono de um corpo inacreditável” e chamar a atenção pelo “sorriso encantador” era desprovido de sentimentos negativos, brilhando pelo glamour que trazia ao grupo. O Fotograma 15 revela o talento e a beleza do negro Carlinhos.

Carlinhos, como era conhecido, já tinha feito alguns trabalhos antes de entrar para o Dzi Croquettes, ensaios na Europa, intitulado “Só de criolos”, como integrante do grupo de dança Folklórico Brazilian, se destacava pelo corpo escultural, pernas religiosamente torneadas graças aos intermináveis treinos na academia e era considerado como representante da feminilidade negra.

Fotograma 15 − Carlinhos Machado como Lotinha

Fonte: Youtube (2009)
O local onde moravam tinha um integrante especial, visto como uma espécie de líder principal, Lennie Dale, que via a casa e seus integrantes como um lugar de permissividade, de loucuras e de paixões e, sob sua regência, o grupo crescia e brilhava cada vez mais. Era na casa que tudo acontecia. (Fotograma 16).


Fotograma 16 − A casa

Fonte: Youtube (2009)


Na casa (Fotograma 16, todos os acontecimentos ocorriam sob o olhar e os cuidados de Lennie Dale, responsável pelo sucesso do grupo, que se destacava como exímio dançarino e que, além de cantar, coreografava o grupo que, sob sua regência. não demorou para se tornar um sucesso graças a seu profissionalismo: para o grupo ele era uma espécie de pai “arquétipo”. Considerado um dos fundadores do Dzi Croquettes, Dale nasceu nos Estados Unidos[16] e, no Brasil, fez parte da elite artística brasileira. Betti Faria diz que ele “era tido como a grande promessa como bailarino” e relembra, ainda, a sua maestria com as danças de salão, bossa nova, samba e balé[17]. No Fotograma 17, uma de suas caracterizações como pai.

Fotograma 17 − Lennie Dale − o pai

Fonte: Youtube (2009)
Lennie sempre foi lembrado pelos amigos como um legítimo “paizão” (Fotograma 17), pois, mesmo em momentos em que a loucura parecia imperar, cuidava deles e de outros tantos “malucos” e essa confiança fortaleceria ainda mais os laços de união do grupo cuja proposta era conduzir as apresentações com certa seriedade masculina e leveza feminina. Tal carinho não passou despercebido, a ponto de chamar a atenção de Liza Minelli que, em um show, comentou a magia deles no palco: “tinham as batidas de seus corações”.

As performances corporais se destacavam pela maestria única, arrojada e, por serem inovadoras, transformava-os em verdadeiras estrelas do show. A forma burlesca deles em palco denotava que o corpo era mais do que um conjunto de “pele, maquiagem e vestimentas”: ganhava vida e voz própria. Nesse sentido, destaco o pensamento de Wasilewski ao afirmar que: “Eles não almejavam um retrato fiel da figura da mulher, mas também deixavam barbas à mostra, e as pernas, peludas. Era um travestimento construído a partir do contraste entre as figuras do macho e da fêmea” (2018, p. 2).

O pensamento de Wasilewski (2018) revela homens despreocupados com a imagem do corpo e sim em ser um corpo multifacetado com destaque para a androgenia. Seus personagens não eram binários ou cis, eram livres, sem rótulos nem as convenções costumeiras na forma de apresentação do teatro clássico.

Na boate Buon Gourmet, Lennie Dale se apresentava para um público repleto de amigos dentre os quais estavam Tom Jobim, Vinícius de Morais e João Gilberto, segundo a coreógrafa Marly Tavares que diz que “o público ficou ‘alucinado’ quando viu eles dançarem a música de Elis Regina ‘Dois pra lá, dois pra cá’”. Com a voz emocionada, Claudia Raia lembra de seu ídolo: um “carrasco, todos aprendiam com ele” e diz que ele havia se transformado em referência para muitos artistas pelo talento purpurinado e ousado. Quando Liza Minelli diz que “ninguém dançava que nem ele”, ela se referia a sua sensualidade e desejo que faziam dele um líder nato, sua dança hipnotizava e influenciava.

Tempos depois, pela proximidade de Lennie com Ciro Bacellar, eles assumiram o romance e vivenciariam as alegrias do amor entre professor e aluno e essa sintonia era vista pelos passos sincronizados dos dois nos palcos. O Fotograma 18 ilustra um desses momentos de “almas gêmeas”.

Fotograma 18 − Ciro e Lennie

Fonte: Youtube (2009)
O que vemos no Fotograma 18 é muito mais do que cadências coreografadas: existia vida naqueles passos complexos nos quais se percebia uma paixão revelada pela exatidão dos movimentos definidos que, não raras vezes, levavam à exaustão devido à intensidade dos ensaios. Dale vivia a intensidade máxima da vida, entre um baseado e outro e, em uma dessas “viajadas”, ficou preso na Penitenciária Lemos de Brito, em Salvador (BA), e até na cadeia fez sucesso. Apesar dos contratempos, o Dzi Croquettes não ficava parado e, entre erros e acertos, foi moldando a imagem do grupo e a personalidade de cada um marcadas, principalmente, pelo ímpeto e pela paixão e a ousadia em enfrentar um sistema que ia de encontro ao seu modo de vida.

A história dos Dzi Croquettes não seria a mesma se não fosse por uma pessoa tão importante quanto qualquer membro do grupo, a Nêga Vilma, dona de um sorriso cativante e de personalidade forte (Fotograma 19).

Fotograma 19 − A Nêga Vilma

Fonte: Youtube (2009)
A presença de Nêga Vilma no grupo era de extrema importância, pois ela era o imã que atraía magneticamente os homens do grupo, da família, da irmandade, tudo em nome do carinho e da proteção deles. Ela era bastante conhecida por barrar os que tentavam se aproveitar do grupo ou que, até mesmo, tentavam tirar alguma vantagem dele.

Dentro da nova proposta familiar, Nêga Vilma desempenhava um dos principais papéis, como se fosse uma diretora, só que, nesse “teatro doméstico”, era ela que comandava todos sob sua diretoria. Em relação a esse elemento agregador, ressalto os novos modelos familiares por fugirem do padrão formado por um “homem instrumental” unido a uma “mulher expressiva” juntos socializando crianças felizes, conforme define Mello (2005, p. 202), segundo quem, nas novas propostas de família inexiste a figura patriarcal e a mulher submissa, não havendo mais lugar para as antigas configurações parsonianas[18] dos anos 1950. As relações homoafetivas, as novas famílias parentais dão o tom do convívio formador de novos horizontes que, ainda hoje, faz parte dessas mudanças.

De maneira geral, os integrantes do Dzi Croquettes eram peculiares, mas, dentre eles, destaco, agora, Eloy Simões por fazer a diferença no grupo onde a sua história começou como camareiro de Lennie Dale, mas, aos poucos, ele foi conquistando seu espaço até se tornar o camareiro de todos.

Em consonância com Edyr Duque apresento Lidoka (ex-Frenética), que dizia que o êxtase era tanto a ponto de criarem uma versão feminina deles, “As Croquettas”, caracterizada por chapéus com flores e roupas estilizadas, abusando da seda, rendas e purpurina...

Naquela euforia, As Croquettas ficaram famosas pela tietagem, ou seja, foi através delas que surgiram as tietes[19] e, por serem fãs incondicionais do Dzi, Wagner Ribeiro retribuiu o carinho e deu uma chance a elas montando um show somente delas nos moldes deles. As Dzi Croquettas não atingiram a notoriedade dos ídolos, mas nem por isso desistiram, pois tudo era um aprendizado e, posteriormente, seriam o embrião do grupo que conheceríamos como As Frenéticas. Sua primeira versão tinha três Croquettas: Regina Chaves, Leiloca e Lidoka. As outras integrantes Sandra Pêra, Dhu Moraes e Edyr de Castro, viriam depois (Fotograma 20).

Fotograma 20 − As Frenéticas

Fonte: Alto Astral. Disponível em: https://www.altoastral.com.br/relembre-maiores-sucessos-grupo-as-freneticas/


As Frenéticas (Fotograma 20) ficaram conhecidas, na década de 1980, pela irreverência e colorido das roupas inspiradas nos Dzi Croquettes. A proposta do grupo pode ser identificada em um trecho da letra da música “Dancing Days” que diz respeito a um corpo desnudo, “sem vergonha”, ainda pautado por costumes, sexualidade, críticas sociais e se refere na verdade, a conceitos que envolvem fantasias: “abra suas asas/solte suas feras/caia na gandaia/entre nessa festa/e leve com você/o seu sonho mais louco/quero ver esse corpo/lindo, leve e solto”.

Para enriquecer o tema, trago o pensamento de Foucault que relaciona os corpos com características tais como:

Materialidade, em sua carne, seria como o produto de suas próprias fantasias. Depois de tudo, acaso o corpo de um dançarino não é justamente um corpo dilatado segundo todo um espaço que lhe é interior e exterior ao mesmo tempo (2010, p. 7).

Ainda de acordo com Foucault, a ideia de corpo, neste caso, pode ser associado ao grupo As Frenéticas no sentido de o corpo ser um centro atrativo e, ao mesmo tempo, disperso, como se fosse uma utopia: ele sangra, vibra, se transforma em redentor em um paraíso sofrido.

Ser um Dzi Croquettes era ser sinônimo de persistência, pois, em suas vidas, o destino estava sempre lhes pregando uma peça mas, nem por isso eles estremeceram e a cada dificuldade saíam mais forte. A censura, certamente, foi um desses problemas, por atacá-los devido ao estilo de vida e por considerá-los um “bando de viados”. O perigo que eles representavam não era o de pegar em armas e lutar, pois suas armas não eram bélicas, sua luta acontecia no mundo das ideias, seus disparos eram com “canhões de palavras”. O regime militar vivia seus momentos de neurose e o principal perigo para eles era um levante popular que causasse turbulência social provocada por pessoas como eles, pela classe artística, estudantil, trabalhista e pela imprensa escrita. A forma como o subversivo era tratado pela polícia é ilustrada no Fotograma 21.

Fotograma 21 − “Censura militar”

Fonte: Youtube (2009)
O Fotograma 21 representa a maneira de proceder da polícia nos perigos iminentes e as prisões aconteciam sob o pretexto da ordem. No caso específico do Dzi Croquettes, as penalidades aconteciam por supostas cenas de nudez: eles davam explicações para o chefe do setor da censura, ouviam xingamentos com palavrões e eram ameaçados o tempo todo de ter as apresentações canceladas.

Por meio da arte, no caso o teatro performático [...] pretende-se compreender a significação concebida acerca da moral e da nudez naquele período, percebendo as nuances que poderiam haver com as visões políticas e econômicas de cada veículo (BORTOLON, 2016, p. 180).

Bortolon (2016) foi sábia ao dizer que a arte precisa ser compreendida independentemente do contexto para se produzir algo assim, com forte simbolismo, mas não foi uma tarefa fácil. As conversas eram uma necessidade para que os shows fossem classificados como livres ou livres com restrição de faixa etária.

O sucesso da temporada no Teatro Maria Della Costa lhes rendeu dinheiro suficiente para iniciar uma turnê na Europa e eles foram para Portugal, de navio, uma epopeia que Nêga Vilma (a única mulher que os acompanhou) relatava da seguinte maneira: “eles foram na aventura, na raça. Levaram aproximadamente 2 toneladas de roupas”. Infelizmente, nesse período, o mundo convivia com a bipolaridade mundial[20] e, nesse enredo de disputas políticas, o Dzi Croquettes chegou em terras lusas, ainda sob o comando do ditador Salazar, quando da Revolução dos Cravos[21]. Para os portugueses, a proposta artística estava em desacordo com seus propósitos de luta e o show não seria entendido pelo povo português que passava por uma turbulência civil. Não restou a eles outra saída senão tentar a sorte na França, pela proximidade dos dois países, mas, diante do fato de não terem dinheiro suficiente para pagar a viagem, foram obrigados a leiloar peças que faziam parte do cenário e dos figurinos.

Eles precisavam urgentemente de dinheiro para se manterem em Paris. Claudio Gaya viajou antes do grupo a fim de negociar as apresentações. Quando estabelecidos em terras francesas, eles iniciam uma nova fase de suas carreiras, os shows na Europa. Na capital francesa, Claudio Gaya entrou em contato com o fotógrafo Patrice Calmettes (um amigo pessoal dele) e, após as negociações, o grupo se apresentaria no teatro Charles de Rochefort. O Fotograma 22 traz um jornal brasileiro anunciando o sucesso deles.

Fotograma 22 − Dzi Croquettes em Paris

Fonte: Pinterest. Disponível em: https://www.pinterest.co.uk/maridalmeida/dzi-croquettes

O destino do grupo parecia sofrer mais um revés em sua carreira e, apesar do talento no palco, ele seria, mais uma vez, boicotado só que, desta vez, pela imprensa que, por não saber como rotular o espetáculo e não conseguir compreender a proposta nada saiu nos jornais. A Europa não estava preparada para esses rapazes definidos como um misto de ironia e duplo sentido, o exotismo era desafiador para um grupo de que não se esperava tal sucesso: era algo inesperado e, ao mesmo tempo, fascinante. (HYPNESS, 2016).

O Dzi Croquettes teve que repensar e criar algo que despertasse a atenção dos franceses e, dentro dessa logística interpretativa, Lennie Dale encontra Lisa Minelli, que se considerava a madrinha do grupo e, a partir daí, deu o suporte necessário para ajudá-los a se reestruturarem, amparando-os, inclusive, na divulgação do show “Dzi Croquettes, Troupe Brésilienne[22]”. Na ocasião, a cantora, que seria homenageada em um evento, aproveitou e convidou seus amigos para assistirem ao show deles. O grupo fez outra sessão à meia noite para ela e o público presente dentre os quais estavam Omar Shariff, Valentino, Catherine Deneuve, Marisa Berenson, Jeanne Moreau, Josephine Baker.

Segundo Liza Minelli: “Eu os vi no Brasil e fiquei maravilhada. Era uma coisa diferente, porque era tão vanguardista. Eu fui aos bastidores e me apresentei: “Incrivelmente ousados. E eu adorei!”. Ela enxergava neles uma liberdade, pois, em uma época em que tudo era vigiado, eles conseguiam se destacar através de muito barulho. No Fotograma 23, o carinho da estrela por eles é explícito:

Fotograma 23 − Dzi Croquettes e a madrinha Liza Minelli

Fonte: Youtube (2009)
É uma trupe brasileira chamada Dzi Croquettes, anunciavam os jornais franceses e eles sairiam estampados na imprensa mais importante de Paris e da Europa graças, em parte, à presença da madrinha Liza Minelli. Posteriormente, em terras italianas, apresentaram-se no Teatro Odeon, em Milão, em abril de 1975, e, em maio, no Teatro Erba, em Turim. Infelizmente, o grupo sofreu outro golpe do destino ao ser enganado por empresários alemães e, endividados, recorreram a um agiota da máfia italiana (Schiavonni) que emprestou dinheiro. Posteriormente, eles pagaram suas dívidas, mas ficaram à mercê do mafioso.

É importante destacar que a “salvação” ocorreu quando Josephine Baker[23] expressou o desejo de o grupo sucedê-la no teatro Gobineau, caso acontecesse algo com ela. Como a situação deles não era boa, foram obrigados a ficar em hotéis simples na fronteira entre Itália e Suíça. Logo após o falecimento de Josephine Baker, o diretor do teatro Gobineau entrou em contato com eles para se apresentarem imediatamente.

Ao regressarem a Paris, fizeram a apresentação e foram prestigiados por uma plateia que tinha como espectadores Liza Minelli, Mick Jaeger e Jean Moureau e a sorte voltou, pois receberam várias propostas de shows e filmagem. Depois de se capitalizarem voltariam a fazer o que mais gostavam: divertir o público pelo riso e pelo talento, qualidades que eles tinham de sobra. Nessa turnê, um de seus personagens se destacava, Paullette que, sempre vívido em suas aparições, “causava” como quando presenteou o público com um vestido “vaporoso, longo, cor de rosa e cantava “Ne Me Quitte Pas” majestosamente bem (Fotograma 24). Afirma Maria Zilda Bethlem que isto foi possível graças ao domínio do idioma francês.

Fotograma 24 − Paulette

Fonte: Youtube (2009)
O Fotograma 24 revela o capricho e a preocupação de Paulette com o figurino, pois, quando se exibia, levantava a saia e mostrava um “monstruoso” tênis 48 e a plateia enlouquecia, segundo Ney Matogrosso. Multifacetada, além de cantar, dançava e chamou a atenção em uma dessas danças quando homenageou os Novos Baianos. “Era todo desengonçado, mas tinha uma onda”, lembra Claudia Raia que o via, carinhosamente, como “um vara pau de fino trato no sentido da sofisticação”. Paulo Bacellar, em um dos depoimentos, lembra afetuosamente do personagem Paulette: “a dança chegou em minha vida desde que ele nasceu, foi o dom de papai do céu que me deu, sempre tive afinidade com a dança”.

Após o término da temporada em Paris, surgiu uma proposta de se apresentarem na Inglaterra e em Nova Iorque, feita por um produtor inglês mas, nesse meio tempo, algo inusitado aconteceu pois, ainda em Paris, foram surpreendidos pelo convite de um fazendeiro baiano. Conforme Nêga Vilma, “apareceu esse espírito do mal e convidou eles para voltar ao Brasil” e ela, indignada, questionava: “o que vocês vão fazer na Bahia? Agora a coisa é Broadway, é Nova York!”. A essa altura, o grupo começava a apresentar desgaste físico e emocional, uns desejavam prosseguir, outros voltar para casa. Voltaram para o Brasil e foram diretamente para a fazenda desse “senhor do cacau”, na Bahia. No “meio do mato”, de acordo com Nêga Vilma, eles consumiram dois quilos e meio de maconha e 250 gramas de “pó”. As discórdias no grupo aumentavam, segundo Paulo Bacellar, e os desentendimentos entre Tovar e Dale se acirravam cada vez mais: tudo era motivo para discussão.

Entre um embate e outro, Tovar propôs um cenário mais simplista e, como estavam na Bahia, definiu o show como uma espécie de “bossa nova”. De posse do material disponível, ele projetou uma escada que lembraria a escadaria do Bomfim e Lennie reprovou. Nesses impasses e brigas, as desavenças aconteciam, de modo geral, por causa da convivência diária e da exaustão dos ensaios. (BARCELLOS, p. 22) e, nesse clima, parecia que o fim do Dzi Croquettes estava cada vez mais próximo. O Fotograma 25 ilustra uma dessas discussões:

Fotograma 25 − Nem tudo brilha

Fonte: Dzi Croquettes
As discussões eram inevitáveis o que, infelizmente, evidenciava um processo sem volta, pois até mesmo os laços afetivos que os uniam pareciam não surgir mais efeito. Ainda dentro da temática do desentendimento, existem explicações para tais comportamentos, que ocorrem pelo fato de as pessoas, de acordo com o pensamento deleuziano, se deslocarem constantemente e uma das consequências são as discussões, brigas, em que, inevitavelmente haverá consumo de álcool e drogas e nesses debates, discute-se o sexo, as alegrias, as frustrações e até mesmo as tecnologias do corpo.

O autor se refere a esse poder como sendo uma espécie de lugar responsável pelas discussões e, no caso do Dzi Croquettes, as discussões aconteciam com maior frequência sem um entendimento entre eles, sugerindo que se caminhava para o fim dos Dzis. São dilemas existenciais que veem o corpo como “um lugar onde se exercem diferentes efeitos de poder que disciplinam a modernidade”, ou seja, perfeitamente cabível dentro do contexto dos Dzis, onde surgiam propostas diferentes, ideias parecidas mas que estavam em rota de colisão.

As apresentações começaram a ser canceladas[24], tudo indicava um descontrole inevitável entre eles, Lennie Dale já percebia que as coisas “estavam fora da realidade, agora havia a ruptura”. Tovar desejava que fosse só mais uma discussão, mas Lennie estava irredutível: “o Dzi Croquettes não podia acabar por algo tão pequeno [...] tudo tinha a sua hora”. Nas desavenças, Lennie abandona o grupo decretando o fim da sua participação.

Com o desfalque no grupo, algumas alterações precisavam acontecer e, para isto, reconfiguraram o grupo, e Fernando Pinto assumiu a direção dos espetáculos. Com a ausência de Lennie Dale, Wagner Ribeiro surge com novas ideias de apresentação propondo uma história de amor entre o Pierrô e a Colombina em que Claudio Gaya faria o papel da Colombina, Tovar interpretaria o Arlequim e Luís Fernando faria o Pierrô. Segundo os integrantes, foi um show distante do que as pessoas estavam acostumadas a assistir e não agradou o público.

Entre erros e acertos, surgiram novas oportunidades de se apresentar em Paris, mas, infelizmente, já não tinham mais a exuberância dos outros shows, parecendo mais uma comédia musical. Era preciso reformular urgentemente as propostas do grupo, por exemplo, com melhorias na imagem e decidiram acabar com o romance e montar outro espetáculo chamado: “Les Speakerines” − As Locutoras. O espetáculo terminava com uma frase de Tovar que dizia “já que somos todos ignorantes, que cresçamos pois”. O Fotograma 26 nos dá uma pequena amostra de como seria essa nova proposta do Dzi Croquettes tentando resgatar o prestígio que um dia encantara a sociedade parisiense e italiana com o talento e o glamour peculiares deles.

Fotograma 26 − As locutoras

Fonte: Youtube (2009)
Os integrantes desta nova configuração do Dzi Croquettes tinham liberdade para criar os personagens e, mais ainda, de receber novos integrantes, como foi o caso do jovem Américo Issa que, literalmente, brilharia no grupo. Tovar lembra dele com carinho por ser uma pessoa talentosa nos palcos: “viam o espetáculo acontecer, era como se fosse um sonho”.

Destaco nessa obra, a suavidade malandra o espírito maroto, provocador que Lennie Dale e o Dzi Croquettes deixaram como legado para as futuras gerações e, neste sentido, o Fotograma 27 é a representação do talento do grupo.

Fotograma 27 −Talento

Fonte: Youtube (2009)
Percebe-se, no Fotograma 27, a magia do grupo em cena, livres e libertinos, perseguidos e amados e só quem vivenciou esse período sabe o que eles representavam, como os bailarinos evidenciaram, no auge de sua carreira, a alegria e liberdade em uma época de exceção. Até hoje, a mensagem é a de que precisamos abalar as estruturas, revolucionar e mostrar que o diferente não é feio e sim multifacetado, belo, colorido, eles simplesmente eram. Agora, eles fazem parte da constelação iniciada há mais de três décadas e continuam a brilhar.

Em 1991, Lennie Dale retornou ao Dzi Croquettes, mesmo com Aids, pois ele sonhava encerrar a carreira no grupo que ajudou a criar. Percebia-se uma certa melancolia, mas ele encarou seu destino ao lado do grupo que tanto o admirou sem se abalar. Ele viveu seus momentos finais da maneira que sempre foi, audaz e alegre. Infelizmente suas condições físicas se renderam e as pessoas mais próximas sabiam que ele estava se despedindo do grande show da vida.



2.1 ENTENDENDO A MAGIA DE SER O DZI CROQUETTES

Em plena ditadura política, civil e social, o Dzi Croquettes ousava, expressando sua rebeldia e sensualidade com seus corpos seminus na atmosfera dominada por uma espécie de “subcultura que potencializava a luta no contexto contra a ditadura com o objetivo de livrar a nova visibilidade do sexo para que o corpo não se tornasse um tabu”, segundo Aguilar e Cámara (2017, p. 34). Tomando as palavras dos autores, o que, de fato, ocorria era um embate entre a popularização da nudez e o prazer de ser o que se desejasse e não sob a ditadura de como deveriam agir e tal desejo só seria possível pela performance dos que assumissem seus corpos políticos e estivessem dispostos a entrar em confronto com um regime político que ditava a ordem como a única saída. Era necessário explorar esse universo de possibilidades e, o grupo, então, faz uso da arte pelos corpos como uma arte final de um produto que fala; para eles, a arte foi além do “life is a cabaret”.

No que diz respeito ao documentário Dzi Croquettes, segundo Leite (2014, p. 42), “não se trata de uma estrutura, mas de um ‘conjunto de processos’ em torno de algo tido como obrigatório: a construção de um enunciador real que pudesse ser interrogado em termos de verdade”. Mais do que a dança no palco, a autora estabelece uma relação do grupo com os enunciados reais e a influência nas artes cênicas, visto que os espectadores sabem a distinção dos fatores determinantes para o processo real, como foi o caso da disciplina dos corpos que se diferenciava do que sempre foi apresentado ao público daquilo que se via, até então, nos grandes shows, pois começava a revolução dos corpos magros porém, definidos e como seria o meio que essa realidade vivenciaria a partir daquele momento. Pela performance, eles visavam a quebra dos paradigmas por meio de propostas que evidenciassem a diversidade sexual e foram vistos muito antes do surgimento de termos como binarismo, homem ou mulher cis, assim, fizeram a diferença por não obedecerem à “cartilha”.

Destaco que a arte do grupo combateu mais do que preconceitos, fortaleceu as lutas contra a homofobia, pois era preciso descontruir o pensamento de que o diferente era errado e que ser gay era uma aberração. Dentro desse contexto, cito Raquel e Greiner (2016, p. 80) quando dizem que são “Corpos que ativam também redes de resistência política porque se excedem e não aceitam medidas de controle, questionam as normas e os lugares a que estariam destinados”.

Sobre os corpos citados por Raquel e Greiner (2016), não se quer dizer que sejam avessos à politica: eles produzem, sim, conhecimento, negam veementemente os preceitos do binarismo e, por isso, é importante responder a tais dicotomias. É imperioso que o corpo saiba o seu lugar e a sua importância nas questões que problematiza para saber quando lutar e impedir os rótulos atribuídos aos LGBTQI+. O Dzi Croquettes ficou conhecido como um dos grupos que lutavam contra as normas e, através delas, no combate à heteronormatividade.

Durante a confecção desta dissertação, utilizei, além de autores consagrados como Butler, Cohen, Colling, Féral, Foucault e García, outros autores cuja base trouxeram à tona a beleza da proposta do Dzi Croquettes. Em minhas buscas, tive a oportunidade de aprender e reaprender velhos conceitos e esses conhecimentos me balizaram na confecção desta dissertação. Dentre as obras produzidas, destaco os trabalhos que citam o Dzi Croquettes: Adriano Barreto Cysneiros (2014), Haroldo André Garcia de Oliveira (2015), Ricardo Emilio de Toledo (2015), Jurandir Eduardo Pereira Jr. (2016), Natanael de Freitas Silva (2017) e Luís Francisco Wasilewski (2018).

O conhecimento que obtive através desses autores e das dissertações de mestrado enriqueceu consideravelmente esta dissertação no sentido de indicar o caminho a ser traçado para a análise da obra deixada pelo Dzi Croquettes mostrando como um grupo de homens perspicazes enfrentou os problemas pessoais e políticos em meio à turbulência social que o país atravessava e, mesmo assim, fez a diferença inovando o foco sobre a homossexualidade e gênero, permitindo ao cidadão, graças à subversão dos corpos, o verdadeiro devir.

Sob a batuta de Lennie Dale, eles mesclaram o teatro ao riso, o figurino feminino às sungas, os coturnos às lantejoulas, ou seja, reinventaram comportamentos e modos familiares, questionaram a heteronormatividade, provocaram e quebraram tabus. Essa proposta no teatro é corroborada pelo pensamento de Fischer quando expressa que os elementos das artes e, dentre elas, o teatro, tão amado pelo Dzi Croquettes, deveriam “ultrapassar as formas tradicionais e impregnassem em profundidade a vida cotidiana” (FISCHER, 2015, p. 951), destacando o grupo como um encaixe perfeito dentro das características que proporcionavam ao público um espaço onde as pessoas pudessem ser felizes e, em troca, não fossem mais vistas como vitimas com suas mazelas sociais, em nome da arte combatia-se depreciações como o racismo e o preconceito.

Todo conhecimento adquirido corrobora os ensinamentos trazidos através das propostas que o grupo expunha em palco, fazendo parte do projeto deles os questionamentos que iam além de palavras, vestimentas e rebolados, alertando-nos de que somos mais do que um nome, somos mais do que um corpo que fala e que, nessa imensidão filosófica, podemos ser um corpo difícil ou complexo mas, na verdade, o sujeito gay faz parte desse emaranhado de pluralidades que fazem do universo LGBTQI+ uma das alternativas para nos encontrarmos ou reencontrarmos.

Toda dinâmica que envolve corpos é, na verdade, um lugar em que se exercem diferentes efeitos de poder e neste lugar ocorre a disciplina dos corpos e, ao mesmo tempo, a rejeição dessas regras, conceitos que refletem o descontentamento do sujeito que, anos depois, viria a ser o que conhecemos atualmente como Teoria “Queer”. No ano em que o Dzi Croquettes estreou (1972), o Brasil vivia um de seus momentos mais delicados desde que virou república, em que os direitos civis vinham sendo, paulatinamente, cerceados e, no meio desse terror institucionalizado, aconteceu o oposto: surgiu um grupo formado por bailarinos afeminados paradoxalmente vestidos de forma contrária à dos homens que serviam às forças armadas que, no ideário militar, eram atléticos, “machos”. Os Dzis eram magros, bichas, espalhafatosos e debochados. Se existisse um exército gay, eles seriam generais.

O movimento GLS tinha como ideia central a rebeldia contra a sociedade que não os tolerava, um claro sinal de que o país estava passando por transformações, que os movimentos estudantis, operários e artísticos não aceitavam a maneira como os militares conduziam o país que as pessoas estavam insatisfeitas e a impressão era de que o governo vivenciava uma invisibilidade social e não tardaria para as ruas se tornarem o campo de batalha. Nesse ínterim, o Dzi Croquettes se aproximava do público com um discurso diferenciado, alegre e libertador dirigido a um publico formado por intelectuais, artistas e os homossexuais.

A vantagem do discurso dito pelo grupo, segundo Veyne (2009, p. 23), “era a parte invisível, aquele pensamento impensado onde se singulariza cada acontecimento da história” e, neste caso, o discurso dava poder à sexualidade, ao modo de atuar desses “desajustados” que confrontavam as ideias não binárias em defesa de uma construção identitária que propiciasse um encontro do “eu” de cada um.

A arte do Dzi era vista como uma mácula à arte, como se fosse um combate aos corpos que eles defendiam, corpos que têm seu conceito trabalhado por Thürler (2011, p. 11): “os Dzi Croquettes foram queers “quando ainda não sabíamos a dimensão política do termo”. A proposta do Dzi, diante da cultura dos corpos perfeitos, do homem ideal, másculo, era o homem afeminado, bicha, sem preconceitos e conceitos “pré-fabricados”, era ser sem rótulos. Diferente dos homens disciplinados que viviam em seus “armários”, os seus integrantes não tinham armário, não tinham medo de ser os gays que eram e as máscaras que tivessem que usar seriam maquiagem e figurino.

Dentro do contexto do Dzi Croquettes, a luta era contra a heteronormatividade compulsória caracterizada pelo uso regular das afirmativas e padronizações ligadas à identidade heterossexual. Nesse cenário de poder, que tem como uma das causas a herança patriarcal, o homem é, por natureza, dominador, logo, mandatário da submissão física e cultural.

No caso de nossos protagonistas, o enfrentamento à heteronormatividade compulsória era instigado nos palcos e, aqui, é pertinente trazer a fala de García sobre tal comportamento:

Ocupada uma dimensão física, teatralizado o corpo que se flexiona no movimento da voz é proposital para enunciar o questionamento de evidências. Trata-se de um desmonte de comunicação arbitrária da palavra e exercida até na ironia com mecanismo de desviá-la, tomando lugar para expor a si no gesto de enunciação (2016, p. 101).

Percebo, no trecho de García (2016), associado à heteronormatividade, um desejo de acabar com os arbítrios impostos pelo controle do corpo por meio de mecanismos nefastos e que, somente pelo conhecimento poderiam cessar, conhecimento que diz respeito a si e à sua sexualidade. Quanto maior o entendimento do que somos e o potencial que representamos, mais as ideias patriarcais são combatidas e, no caso do Dzi Croquettes, esta era, justamente, a sua principal linha de ataque.

A heterossexualidade compulsória diz que o homem é responsável por quase tudo, logo, ele é visto como o ícone que deve prover a casa e quem vive nela. Para um gay, esse tipo de atribuição era inadmissível pelo fato de ele estar associado, pelos seus trejeitos, à “mulherzinha”. A heteronormatividade evidencia a masculinidade dando-lhe o poder de uma simbologia no sentido de que ser “homem” é ser normal, é o correto e o inverso, ser homossexual, é caracterizado como “anormal”. Na pergunta “é menino ou é menina?”, o peso das decisões sobre o gênero começam a incidir na vida que se inicia e, implicitamente, passam a valer as normas pelo qual somos regidos. São dilemas que se associam ao início do mecanismo, segundo Butler, que:

já havia esmiuçado o mecanismo de funcionamento da heterossexualidade compulsória e da heteronormatividade, revelando como ambas se sustentam através da exigência da linha coerente entre sexo-gênero-desejo e prática sexual [...] para que essas ações tenham êxito é necessário que elas sejam constantemente repetidas e vigiadas (COLLING; ARRUDA; NONATO 2019, p. 12).

Para Butler, existe a funcionalidade do processo heteronormativo cujas regras e práticas garantem a ordem e esse controle tem que ser eficaz o suficiente para determinar o sucesso diário e, para isto, não basta apenas ser heterossexual, é preciso ser fiel à religião cristã. No que diz respeito à rigidez do processo, destaco a lógica bizarra do “entende-se o imperativo inquestionado e inquestionável por parte de todos os membros da sociedade com o intuito de reforçar ou dar legitimidade às práticas heterossexuais” (FOSTER, 2001 apud MIRANDA, 2010, p. 83).

Percebo que, de fato, a heteronormatividade não norteia nem regula a orientação sexual do heterossexual, ela atua, segundo Lauren Berlant e Michael Warner (2002, p. 230), por meio de medidas das “instituições, estruturas de compreensão e orientações e práticas que fazem não só que a heterossexualidade pareça coerente [...] como também que seja privilegiada”. Colocado dessa maneira, existe uma logística baseada no suporte educativo, jurídico e médico que, através dos meios midiáticos, a assegura e garante como sendo o ideal e belo dando poder hierárquico aos que, sabiamente, organizam e disciplinam o caos proposto pela diversidade de gênero.

Ainda em relação ao tema, cito Colling, Arruda e Nonato (2019, s/p) quando dizem que o oposto da heteronormatividade se caracteriza como “orientações afetivas e sexuais distintas das heterossexuais [...] aponta para as práticas afetivas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo”. São conceitos que ditam a vida do sujeito, (in)dependendo de sua escolha ou orientação.

Baseado nas palavras de Colling, Arruda e Nonato (2019), analiso a performance de gênero pela sua amplitude e com o olhar voltado para além dos conceitos impostos sobre o real significado das palavras sexo e heteronormatividade os quais precisei rever e voltar-me ainda mais para o sujeito LGBTQI+ trabalhado nesta dissertação. São ideias que observam os processos de liberdade e criatividade das pessoas que optaram pela forma de conduzir suas vidas indicadas para a diversificação do que realmente significa o gênero. O conhecimento e os limites definem a performance pela quebra dos dogmas e ao permitir que os modos de transpor as fronteiras subentendam isto como uma “Quebra que aglutina, permite analisar, sob outro enfoque, numa confrontação [...] questões complexas como a da representação, do uso da convenção, do processo de criação etc.” (COHEN, 2002, p. 23).

A proposta é esclarecer a complexidade da performance de gênero por pertencer ao processo que firma a heteronormatividade da heterossexualidade compulsória, para uma melhor compreensão da linguagem corporal sob vários ângulos.



3 TATUAGEM – ENTRE PERFORMANCE E MARCAS DA PARÓDIA

O filme Tatuagem, de Hilton Lacerda (2013), poderia funcionar como um déjà vu por retratar fatos parecidos com o documentário Dzi Croquettes descritos no capítulo anterior, ou seja, inicio este capítulo tendo a sensação de estarmos vivendo algo já acontecido, que as histórias são parecidas ou, pelo menos, sugerem uma continuidade pelo movimento da contracultura anunciado nos anos 70. Foram tempos de liberdade vigiada regidos pelo temor das perseguições, e este tipo de medo social é trabalhado por Hobbes (2019) quando diz que “os gays estavam sendo expulsos de suas próprias famílias, suas vidas amorosas eram ilegais”. A sociedade vivia sob o receio da prisão por discordar do governo notoriamente conservador.

Ao iniciar esse capítulo tem-se, portanto, a sensação de que estou falando do capítulo anterior devido ao fato de os acontecimentos serem muito parecidos, diferenciando-se apenas com relação à data e ao local, mas isto foi intencional no intuito de evidenciar uma série de acontecimentos que, segundo Deleuze (19871999), representa a nossa realidade sendo “o limite comum a todas essas séries [...], a saber, a constituição dos espaços-tempos”. Isso significa que, independentemente de onde e quando os fatos aconteçam, repetidos são os confrontos, daí a necessidade de as pessoas saberem a história de seu país e lutarem para que tais eventos não se repitam e nos privem da liberdade.

Tatuagem (2013) apresenta o desafio de dois personagens que vivem um romance tórrido e proibido, em uma época em que o país era governado por militares, logo, um regime preconceituoso auxiliado por uma sociedade também preconceituosa que não permitia outras formas de amar. Essa história, por sua impossibilidade, parece indicar uma tragédia “grega” social. Esses elementos sociais são trabalhados por Deleuze (1999, p. 11) que diz que, ao entrarmos em uma sociedade de controle, tendemos a viver sob o seu domínio, pois as liberdades vigiadas são asseguradas pelo aparato estatal imposto com severidade e disciplina.

Tatuagem (2013), de Hilton Lacerda, em consonância com o filme Dzi Croquettes (2009), de Tatiana Issa e Raphael Alvarez, apresenta algumas semelhanças, por isto, quando necessário, farei menção à obra de Tatiana Issa como faço no Fotograma 28.

Fotograma 28 − Dzi Croquettes e Tatuagem

Fonte: setimacritica.blogspot.com (2014)
Ao optar pelo filme Tatuagem e pelo documentário Dzi Croquettes, tinha como desafio entender qual o pensamento dos diretores do filme bem como o jogo de palavras e gestos apresentado pelos personagens incorporados pelos atores a fim de descrever o comportamento daqueles homens nada convencionais propondo o teatro de protesto. Toda essa vontade nada mais era do que o ímpeto do descontentamento com os militares no poder e, nesse embate, consequentemente, ganhavam notoriedade por desafiá-los. Destaco, aqui, uma das falas de Clécio Wanderley retirada do filme Tatuagem (2013):

Bem, como eu ia dizendo, aqui no reino do espetáculo, todo mundo faz parte dessa alegria. Por isso nossa arma é o deboche... [...]. Vamos ter Paulette Beirinha, Suzana Estylo de Gata, a apresentação de Marquinho Odara e o sensacional concurso Membro de Ouro.

Só esse fragmento de fala revela como eram os shows que aconteciam no Chão de Estrelas, pois eles convidavam o público a interagir com eles, tornando o espetáculo maior e melhor. Suas apresentações eram voltadas para as pessoas que viviam nas “margens” da sociedade, pessoas invisíveis para o Estado e que, quando lembradas, era pela violência contra elas.

A ditadura mostrava sinais de declínio, em meados de 1978, mas nem por isto as agressões diminuíam, cumprindo-se o exercício da ordem contra os “subversivos”[25] que escolhiam justamente as artes pelo fato de homens interpretarem mulheres e vice-versa, portanto não existia gênero, divisões, ditames, ou seja, nessa mistura, surgia um dos grupos influenciados por toda essa dinâmica cultural que viria a ser conhecido tanto dentro da proposta do filme como do Chão de Estrelas (Fotograma 29).

Fotograma 29 − O Chão de Estrelas

Fonte: Tatuagem (2013)
Um dos destaques do Fotograma 29 é a inexistência da caretice, a alegria dos grupos não permitia que esse sentimento existisse em Tatuagem ou em Dzi Croquettes.

Quando Clécio Wanderley apresenta o Chão de Estrelas como o “Moulin Rouge do subúrbio, a Broadway dos pobres, o Studio 54 da Favela”, ele compara tais lugares com um conceito de provocação, com discursos carregados de filosofia anarquista, cabendo ao público o encanto e o grito de liberdade por um Brasil esperançoso como seria mostrado nas apresentações. Os lugares citados por Clécio Wanderley existiram e eram conhecidos pelo que havia de melhor no mundo do entretenimento. Quanto ao Moulin Rouge, era notória a sua atmosfera que lembrava um cabaré e que, além das apresentações do cancan, era abrilhantado pelas luzes, pelas vibrações das músicas e pelo distinto público intelectual da época. Já os teatros da Broadway remetiam aos espetáculos glamorosos, exaltando a literatura, os movimentos agressivos e febris com destaque para as performances corporais aludindo ao manifesto futurista. Por fim, a discoteca Studio 54 que fez o maior sucesso entre o público gay, em meados dos anos 1970, início dos anos de 1980, localizada em Manhattan.

Dentro desse contexto, menciono um trecho de Aguilar e Cámara sobre os anos 70, que destaca, além da ditadura e dos movimentos de rua, a indústria cinematográfica:

Popularizariam e industrializariam a pornografia por se tratar de uma luta sexual-política que tem como campo de batalha os corpos e o prazer, é o crescimento da indústria do entretenimento e lazer: cinema, teatro, é a gestão da política dos corpos e da vida (2017, p. 32).

Para Aguilar e Cámara (2017), sabe-se que esse período foi interessante para quem soube se beneficiar das oportunidades que a época oferecia, como a indústria do entretenimento, e aqui destaco o cinema e o teatro como dois setores que precisaram inovar nas suas respectivas áreas. É nesse sentido a teatralização do Chão de Estrelas que, à sua maneira, aproveitava a chance de aparecer para o público, pois as suas apresentações, além de interessantes e interativas, se destacavam por serem hilárias de forma que caíram na simpatia da plateia e, tal como aconteceu com o Dzi Croquettes, despertaram a atenção das autoridades que consideravam o local um “antro de degenerados”. O público do Chão de Estrelas era formado, em sua maioria, por gays, artistas, intelectuais e “alucinados” de todas as tribos. Era uma época aberta a novas propostas e sobre isto aponto Ortolan ao nos lembrar que:

[como] o país se encontrava naquele momento, seu posicionamento político-rebelde serviria de forte aporte opositor ao establishment da ditadura. Não só ela, como todo o elenco até agora apresentado tinha como proposta a nova linguagem corporal graças à teatralidade e performance dos artistas envolvidos em assuntos que envolviam conteúdos político-sociais claramente explícitos (2011, p. 101).

Quanto às inovações referidas por Ortolan (2011), as mudanças aconteciam rapidamente, os corpos ferviam, o linguajar era mais ácido, os diálogos eram subliminares, pois os artistas não aceitavam mais o “velho teatro”. Clécio Wanderley (Irandhir Santos), um dos principais personagens de Tatuagem, convivia com o novo e inusitado, mas tinha, em seu passado, um pai com ideias arcaicas e que, por ser severo, dizia “vai servir o exército e tomar jeito, vai virar homem”. Essas palavras o perseguiram tanto que marcaram a sua vida para sempre, daí a aversão à ideia de que o exército “melhora” o sujeito, um pensamento do seu pai que remonta à herança machista e patriarcal, daí porque não poupava os exageros nem as frescuras no seu jeito de ser e atuar. O Fotograma 30 retrata uma dessas cenas de escracho.

Fotograma 30 − Clécio Wanderley

Fonte: Tatuagem (2013)
O personagem Clécio apresentava o teatro dirigido por ele a partir de suas próprias características que mostravam um sujeito descolado, com poder da persuasão e querido por todos. Interpretado por Irandhir Santos, tinha como característica principal as atuações sarcásticas e sua bagunça contagiava outros artistas que viam na subversão a oposição sob novas propostas em nome de uma práxis da desordem.

As características do personagem Clécio mostram um homem com idade aproximada de 35 anos, homossexual que optou por se separar de sua mulher Deusa (Sylvia Prado), mas tem um carinho muito grande por ela e, mesmo separados, a relação deles é forte. Seu filho, chamado Tuca (Deyvid Queiroz de Morais), como todo garoto na idade dele, é motivo de reclamação e tem queixas dos professores na escola e, no bar, ingere bebida alcoólica escondido dos pais. Esse é o núcleo familiar de Clécio que tem como característica ser mais do que um corpo político pois suas ações repercutiam em todo o grupo e seu personagem comandava com maestria e “com efeito, regendo o tempo, o lugar, a finalidade da transmissão, a ação do locutor e, em ampla medida, a resposta ao público” (ZUMTHOR, 2018, p. 29-30).

A comunicação, de acordo com Zumthor (2018) e nesse contexto tem esse poder de transmissão que percebemos no personagem de Irandhir Santos que faz uso da oralidade, constantemente, a fim de que os que estão ao seu redor compreendam claramente o que ele delega ao grupo. Outro personagem que abalará a vida de Clécio é Fininha, apelido do personagem Arlindo Araújo vivido pelo ator Jesuíta Barboza, que tem 18 anos, serve no quartel e se destaca por ser um “milico” jovem e de uma beleza chamativa. Quando em serviço, mora no quartel, mas sua família vive no interior do estado. Arlindo é o único homem da família e sua relação com a mãe, uma irmã, duas tias idosas e a avó cega começa a mudar depois que ele conhece Clécio. Lacerda nos mostra dois universos prestes a se chocar tendo, de um lado, o filho penitente que ouve a Ave Maria (Il Divo) e, do outro lado, o personagem que dança a Polka do cu (Dj Dolores).

Fininha vive atormentado pelo pensamento e pelo desejo por homens e, ao mesmo tempo, não pode fazer nada porque “ser gay seria o mesmo que arder no inferno”. Seu dilema é existencial pois, ao mesmo tempo em que é um jovem infeliz por não aceitar (ainda) sua homossexualidade, tem que cumprir a obrigação cívica e militar que, por sua vez, (tecnicamente) também não aceita gays na corporação. Ele tem uma namorada chamada Jandira (Bruna Barros) que é irmã de Paulette. Sua vida se resume em viver um personagem que ele não é, ou seja, viver sob a clausura do armário, por ser gay e não o homem que a sociedade enxerga como exemplo de um soldado militar. Esses são padrões sociais impostos e, de certo modo, premissas incutidas pela religião, nele que cresceu obedecendo às crenças da moral cristã. Mudam os locais mas ele continua preso seja psicologicamente seja pela prisão do quartel, dois pensamentos antagônicos em uma única pessoa.

Fotograma 31 − Fininha e suas prisões

Fonte: Tatuagem (2013)
A imagem de Fininha entre os beliches no quartel não é casual, é a indicação de uma prisão que sufoca o desejo reprimido e faz com que ele viva uma vida sob disciplinas pelo temor de ser descoberto. A masculinidade não é problema para Fininha, a dificuldade está em exercê-la em um ambiente homofóbico como o quartel, sobre isso trago Halberstam (2015), que, ao definir o termo, diz que a masculinidade é uma propriedade do homem e quando esta pessoa é imitada, ele acredita que a masculinidade está nele. No sofrimento de Arlindo, ele imita um hetero e tem que acreditar nele, mas, internamente, essa crença é traduzida em angústia por não poder revelar sua orientação sexual.

Paulete, interpretado pelo ator Rodrigo Garcia, é fechativo e escandaloso e, por onde passa, “causa”; ele é cunhado de Fininha e sua excentricidade se destaca pela androgenia e pela frase “bicha burra nasce morta”. Nesse tom, seu perfil está delineado como um personagem “ácido” que provoca e desperta desejos, seu personagem está associado ao teatro e ao ambiente permissivo do local − ele é uma espécie de “braço direito de Clécio” − e sua imagem está associada a sua extravagância (Fotograma 32).

Fotograma 32 − Paulette (Rodrigo Garcia)

Fonte: Tatuagem (2013)
Algumas pessoas veem Paulette como a “bicha transloucada”, ou seja, “fechativa”[26]; para outros, ele é a personificação da alegria e não esconde sua afetação e jeito de ser. Ao contrário de Paulette, Fininha, em uma de suas folgas do quartel, visita seu cunhado sem saber o que encontrará no local onde seu cunhado vive nem que tipo de arte ele pratica e menos ainda o tipo de teatro em que ele se apresenta e seu primeiro contato com o local é de estranhamento que, depois, se transforma em êxtase, pois ele não imaginava existir um lugar onde os homens se beijavam e podiam expor seus corpos dissidentes e indisciplinados, atuando de forma livre, com interpretações que, talvez, lembrassem as vedetes que interpretavam canções com gingados, rebolados e, também, com letras que variavam da dor de cotovelo a músicas alegres e escrachadas.

Ao entrar no bar, ele é enfeitiçado pela música, como um marinheiro seduzido pelo canto da sereia. A voz melódica é de Clécio, que se apresentava no palco interpretando a música de Caetano Veloso “Esse cara” e, a partir do encontro de olhares, como se fosse um bandido que o roubaria com o olhar a atração é mútua e mudará a vida dos dois para sempre. Clécio Wanderley se apaixona por Fininha, que namorava a irmã de Paulette, e é nesse impasse amoroso que a história se desenvolve, essa é a proposta de Lacerda que optou por privilegiar o dilema dos personagens.

É sobretudo ao teatro e ao romance que o cinema se vincula. Podemos, pois, definir o cinema como teatro romanceado ou romance teatralizado. Teatro romanceado, porque, como no teatro, temos as personagens de ação encarnadas em atores (ARAGÃO, 2018, p. 18).

O que, de fato, Aragão (2018) nos esclarece é que, no cinema, dentro de suas proposituras de atuação os personagens apresentam, livremente, interpretações associadas ao lugar e ao período em que se encontram influenciados pelas características próprias aludindo aos fatos políticos e culturais do momento. Ao dizer que a performance é a expressão máxima, é o “único modo vivo da comunicação poética”, Zumthor (2018, p. 33), em poucas palavras, resume o comportamento dos integrantes do Chão de Estrelas.

Clécio e Fininha passam a viver o seu romance e não conseguem mais disfarçar o encantamento de um pelo outro, como se uma força despertasse neles a volúpia, a vontade de entrelaçar os corpos, o desejo, o sexo. A partir daquele momento, ao assumirem o romance, suas vidas mudariam para melhor na comunhão dos desejos íntimos, mas também seriam mais um casal gay abominado pela sociedade.

Fotograma 33 − Clécio e Fininha

Fonte: https://br.pinterest.com/Tatuagem 2013
O romance dos dois tinha tudo para ser perfeito mesmo sendo o rapaz soldado do exército, por fazer parte das forças armadas, sua função era a de combater os degenerados da sociedade, como os “viados, putas, maconheiros, comunistas e subversivos”, bem como combater todo tipo de pensamento social ou comunista entendido como “doença social”[27] que ameaçasse o país. Em uma de suas falas, Clécio diz “a práxis do improvável junto à epifania da desordem”, querendo dizer que, até na impossibilidade, o desejo arde e a práxis do improvável é confirmada quando ele questiona Fininha ao saber que ele serve no exército: “No quartel? Um infiltrado? Um agente da ditadura? Tá fazendo o que aqui menino? Veio nos vigiar foi? Nos punir? Ou será que veio pra nos prender?” (ZORZELA, 2017, p. 52). Sem saber o real motivo da presença do soldado naquele ambiente, indaga sobre ele ser um espião e, assim, olha para ele com um olhar sensual sob a música de Caetano Veloso “como os olhos de um bandido” e diz: “Eu estou pronto para o que der e vier” (SANTOS JR, 2015, p. 8).

Esses são questionamentos que apontam para uma problemática, o poder da escolha, seja como informante seja pela verdade, que se resume à capacidade de análise e aceitação e, de fato, nas falas dos personagens, encontra-se o poder de escolha.

Fininha, por estar em um ambiente nocivo a sua forma de pensar, vê o local como algo que desestrutura a sua vida, por ser um ambiente predominantemente “macho” e, por ter se apaixonado por um “viado desvairado”, ele opta pelo lugar da libertinagem que lhe permite aberturas, ou seja, o cabaré, que é onde o fruto proibido é permitido. Na trama, tudo parece conspirar a favor de Fininha, afinal, o local onde ele se encontra, o quartel, no ideário gay, é um ambiente desejado por todo “viado”, um lugar cheio de homens, mas a sorte que o presenteia é retirada pelo destino e, na verdade, esse ambiente inverso ao Chão de Estrelas é uma verdadeira armadilha pois os homens másculos com o suor escorrendo são justamente os que o perseguem[28].

Por sua vez, o Chão de Estrelas não é um local só de viados, um gueto onde as bichas se encontravam para paqueras, azarações, pegações ou, simplesmente, para se divertirem com shows de Travecas, é bem mais do que um ponto de encontro de gays, é um local onde se evidenciam os momentos em que a coragem e a verdade são anunciadas, onde não se permite burocracia, onde a única permissão é para as performances de forma explícita. Ali, não há lugar para o discurso fascista que proíbe a livre circulação do desejo, os corpos são livres e fluem, reinventam-se, como uma espécie de construção e produzem as subjetividades e ignoram as leis disciplinares.

O local é mais do que um casarão antigo ou mal conservado, é um lugar onde o intelectual Jommard Muniz de Brito inspirará o personagem poeta Joubert Mouritz, propondo experiências. Ali não há lugar para o gênero, a premissa das apresentações é confundir as performances dos personagens a ponto de interferir nas relações vividas por eles. O local é descrito como:

Uma casa de madeira, por fora é cor de azul. E, por dentro, é repleto de mesas com cadeiras, um pequeno palco e luzes coloridas de pisca-pisca. A iluminação, sempre difusa e avermelhada, não mostra nitidamente o espaço, criando uma atmosfera onírica. Quando há apresentações, está sempre cheio e os atores, fantasiados, performáticos e lúdicos, se misturam com o público. Assim, os personagens principais têm suas histórias mostradas e o espectador começa a se identificar com eles e com suas respectivas narrativas, cada uma com seus conflitos inerentes (GALVÃO, 2017, p. 18).

A grande família do Chão de Estrelas, apesar de todas as dificuldades, tinha a casa onde viviam como um lugar mágico onde existia o diálogo e era permitido questionar assuntos como quais os motivos para a sociedade ser regida pelo moralismo e pelo conservadorismo, interrogações que ocorriam no sentido de descobrir quem disse isso ou porque as coisas eram assim. Como dito por Clécio Wanderley, não se tratava de um Studio 94 ou de um Moulin Rouge, mas sim de um local que a plateia deveria ter como se fosse sua casa, onde ela se sentiria livre para ver os espetáculos (dentro das possibilidades técnicas) e ficaria à vontade, sem ser vigiada ou observada, pois o espaço favorecia que as pessoas se divertissem sem identificação de gênero ou de algo que marcasse o seu sexo, e onde não se explicava nem se corrigia desvios. No Chão, elas apenas se divertiam.

O personagem Fininha vivia o seu dilema e inferno astral: gostava de homens, frequentava um ambiente gay, era apaixonado por um e, ao mesmo tempo, vivia o temor de ser descoberto por não ser um homossexual assumido, afinal as leis militares são expressamente claras e proibitivas quanto à homossexualidade no quartel[29] e, caso isto aconteça, o soldado é expulso sem qualquer honra. O Fotograma 34 ilustra o momento onde os homens estão tomando banho nos chuveiros do quartel.

Fotograma 34 − Chuveiro do quartel

Fonte: Tatuagem (2013)
Aquele espaço não era uma sauna, mas havia vários homens nus; não lembrava um darkroom[30], mas os homens, em seus alojamentos, dormiam no escuro; não era uma boate gay, mas eles suavam e faziam brincadeiras capciosas. Aqui, eu poderia estar falando do paraíso gay, mas, não, esse lugar era a representatividade do poder masculino, lugar onde “todos” são machos viris, heteros e brancos, mas o armário vivido por Fininha escondia essas premissas. Nesse contexto, trago Santos (2010) quando diz que para os que não se encaixam nessas regras, a alternativa é se mudar para uma cidade grande ou capital ou então “não sair do armário”, mas, segundo Cysneiros (2014), viver uma vida falseada é não viver[31].

Já para Sedgwick (2007, p. 1), o armário é um “dispositivo de regulação da vida de gays e lésbicas que concerne, também, aos heterossexuais e seus privilégios de visibilidade e hegemonia de valores”, resumindo, nesse conceito, o significado de um modo de vida que as pessoas encontraram para se manter no anonimato quanto a sua sexualidade, principalmente os homossexuais. O armário é um subterfúgio para os que não desejam se expor e veem o sigilo ou o não se expor como algo supostamente “seguro”, mas vale lembrar que este não é considerado ainda uma presença forte e consolidada. Estar no armário não significa negar a existência da pessoa, mas continuar a sua narrativa histórica como uma possível “salvação”. Ainda de acordo com Sedgwick (2007), viver no armário não diminui o cidadão que faz a opção por não viver uma vida instável ou constrangedora, mas sim viver com o mínimo de dignidade diante dos preconceitos sociais defendidos pelos conservadores.

Esse é o ambiente em que Fininha vive, o armário, que, neste caso, se caracteriza por ser um infindável aprisionamento no qual o sistema reproduz conceitos ou normas e do qual não há livramento sem resistir, pois, somente acabando com a hostilidade criada em torno do “armário” ele não será mais visto como uma alternativa utilizada por homens que preferem ter seus desejos preservados pelo anonimato. Aqui, é pertinente lembrar o pensamento de Butler quando diz que “funciona sempre e unicamente para subjugar ou libertar um sexo fundamentalmente intacto, autossuficiente, e diferente do próprio poder” (2017, p. 167). Foucault e Deleuze (2013) também concordam que este é um dispositivo sexual criado por movimentos para essas formas de aprisionamento e que o “armário” se aproxima da ideia da homossexualidade como essência.

Fininha, ao repetir, com seus colegas, a provocação do instrutor, no quartel − “Amamos nossa mãe, mas amamos nossa pátria, porque devemos obediência à pátria” − mostrava estar sendo docilizado pelas armas. Tais distorções em nome do Estado Nacional eram prerrogativas tidas como verdade positivadas por todos e mostravam a doutrinação dos jovens tal como uma lavagem cerebral que domina e cujo principal objetivo é obter corpos obedientes que começava com a educação na escola através da disciplina Moral e Cívica. O personagem Fininha não tinha ideia da existência de lugares como esse cuja frequência era de simpatizantes da comunidade gay e, até então, isso não fazia parte de seu dia-a-dia, para não deixar transparecer a ânsia em público, pois era “perigosamente alienante passar pela vida como um homem atraído por outros homens” (HOBBES, 2019), e se anulava em relação aos desejos carnais, vivia uma falsa realidade namorando uma mulher, sentimento oposto ao seu desejo. Diante dessa constatação, até os anos 80 ,tinha-se a ideia de que o gay podia expressar seus desejos em boates, saunas ou bares, mas corria o risco de ser surpreendido pela polícia ou por alguém conhecido ou infiltrado pelos militares. Já o gay interiorano era recluso, não tinha com quem falar, não tinha para quem expressar seus sentimentos, não lhe restando outra saída senão o armário e a frustração de uma vida infeliz a não ser sair do lugar onde ele vivia.

O Chão de Estrela se apresentava como “à frente de seu tempo” e isto despertou, no soldado Araújo (Fininha), a possibilidade de extravasar seu ímpeto mas, ao mesmo tempo, ele não se sentia confortável pelo fato de estar traindo sua namorada. Posteriormente, Clécio também viria a sentir a dor da traição, com outro personagem do filme chamado Érico, ele se irrita com Fininha pela deslealdade e Fininha, por sua vez, se defende dizendo que o próprio Clécio alardeava que “ninguém tem contrato com nada, ninguém é de ninguém”, tentando justificar a traição, mas o fato é que o bar, a casa onde viviam, tinha esse tipo de comportamento como permissível.

Tatuagem, em suas abordagens, valoriza os corpos que representam mais do que imaginam ferramentas políticas respaldadas pelos seus rebolados, trejeitos e provocações que eram vistos como atentado à moral e causavam desconforto pelas provocações. Estas são características que se assemelham ao pensamento de Foucault por mostrar o corpo como:

Incompreensível, penetrável e opaco, aberto e fechado: corpo utópico. Corpo absolutamente visível – porque sei muito bem o que é ser visto por alguém de alto a baixo, sei o que é ser espiado por trás, vigiado por cima do ombro, surpreendido quando menos espero, sei o que é estar nu (2010, s/p).

De acordo com Foucault (2010), as palavras revelam um sujeito vigiado, diante da invisibilidade social que, na proposta do filme, encontra segurança no Chão de Estrelas para que, ao desnudar-se, ele se descubra a si. Assim, nesse jogo entre Clécio e Fininha, afloram desejos, mesmo que o personagem Fininha ainda esteja preso à performatividade de gênero (BUTLER, 2017).

Tatuagem procura mostrar que, em Olinda (Grande Recife), não só no filme, mas, na vida real, existiram homens com propostas similares às do Chão de Estrelas, mas com outras configurações. No cenário artístico recifense houve um grupo que se chamava Vivencial Diversiones[32] que serviu de inspiração para o Chão de Estrelas que, no filme, ilustra a cena satírica sob a direção de Clécio Wanderley.

As linguagens criadas na dramaturgia de Dzi Croquettes e Tatuagem, enunciam uma forma de expressão que ganha um tom paródico e compartilha o que Butler trata sobre enunciados que diriam uma forma diferente de releitura sobre a arte paródica que compartilhava a mesma ideia:

A paródia não é subversiva em si mesma, e deve haver um meio de compreender o que torna certos tipos de repetição parodística efetivamente disruptivos, verdadeiramente perturbadores, e que repetições são domesticadas e redifundidas como instrumentos da hegemonia cultural (BUTLER, 2017, p. 198).

Para Butler (2017), portanto, o pastiche funciona como uma espécie de “válvula de escape”, ou seja, ele ameniza a inflexibilidade da lei, nesta nova reinterpretação através do ridículo, encoraja outros sujeitos a não mais se calarem e a se rebelarem contra os velhos dogmas da arte padronizada. O grupo, ao mesmo tempo em que provocava o sistema, angariava simpatizantes e a antipatia dos ofendidos, com a maneira de atuar semelhante à do Dzi Croquettes e neste cenário não tardaria para os militares zombados por eles ficarem sabendo desses fatos.

A reivindicação por mudanças sociais ficava cada vez mais evidente, acontecia, praticamente, em todas as capitais e grandes cidades onde era possível ver o clamor das pessoas que lotavam as ruas exigindo mais direitos, abertura para a democracia. Para elas, era chegado o momento de dar um basta às restrições civis. O movimento Diretas Já[33] tomava as ruas e os principais locais de aglomeração urbana, mesmo sendo proibido, os brasileiros iam às ruas e exigiam a volta do regime democrático, unânimes em afirmar que o fim da ditadura estava próximo. Para demonstrar sua insatisfação, o Chão de Estrelas desfila nas ruas de Olinda, contrariando os militares, como ilustra o Fotograma 35, em uma das cenas do filme em que a “turba” desfila pelas ladeiras, velhas ruas e casarões.

Fotograma 35 − O Chão de Estrelas desfilando nas ruas de Olinda-PE

Fonte: Tatuagem (2013)
Ao optar pela aparição nas ruas de Olinda, o Chão de Estrelas recorre ao happening, quebrando as convenções e as criações dramatúrgicas do teatro clássico, visto que não existia mais a distinção palco/plateia e, desse modo, o artista era o sujeito e o objeto de sua obra. Féral[34] (2008, p. 203-204) fala de “desconstruir a realidade, os signos, os sentidos e a linguagem”, referindo-se ao teatro in performance quando o eu se coloca na cena do palco.

Era preciso desmistificar a ideia de que todo homossexual era “pervertido”, mas era preciso também agir com cautela no sentido de não provocar os censores; era preciso sim acabar com a violência mas, era preciso estar “preparado para esperar a rejeição” (HOBBES, 2019) pois os gays eram analisados o tempo todo como se fossem um experimento e a realidade utópica almejava encaixá-los dentro da premissa social, cabendo a eles, no palco, mudar essa realidade.

Vale destacar a presença de espírito de Lacerda pela decisão de fazer o filme trazendo como inspiração um grupo de Recife-PE, pessoas que abalaram as noites e o público daquele período. O Vivencial Diversiones brilhou nas noites recifenses e performatizou, durante sete anos. Entre 1974 e 1981, suas vidas foram um misto de alegria, uma aventura intensamente vivida por rapazes pernambucanos e que, de certa maneira, incomodaram a sociedade. Foram os detalhes da carreira deles que instigaram em Lacerda o interesse de realizar o filme tendo o grupo como inspiração (Fotograma 36).

Fotograma 36 − Vivencial Diversiones

Foto: http//anai.ueg.br
Antes de iniciar as filmagens, ainda nos momentos de pré-criação do filme, João Silvério Trevisan[35], em conversa com Hilton Lacerda, disse que não se tratava de uma biografia do Vivencial Diversiones, menos ainda, de um documentário, mas de uma ficção cujas características principais trariam a liberdade poética das ideias do grupo que serviria de inspiração para o filme Tatuagem (2013). A transgressão, na capital pernambucana, tinha um nome e um rosto e este seria o início da jornada do grupo que ficaria conhecido pela sua irreverência ao abordar temas sociais do cotidiano tendo como pano de fundo a influência da contracultura.

O grupo teve como fundador Guilherme Coelho, que frequentava o Mosteiro São Bento, na Grande Recife (PE), cuja historia de vida é semelhante à vida em paralelo do personagem Clécio, interpretado por Irandhir Santos. Essa história dá o tom ao drama do diretor fictício cujo pai se destacava pela rigidez e tanto o personagem como Guilherme tem suas vidas mescladas o que criaria elementos para o personagem ter um pai conservador que atuava como dentista dentro das Forças Armadas. O nome Vivencial teria surgido, segundo Guilherme Coelho, da montagem de um dos espetáculos, o Vivencial I, que aludia às experiências de vida das pessoas responsáveis pela elaboração do espetáculo, influências estas que vinham tanto de operários como dos atores. Os elementos da peça eram carregados de homossexualidade, nudez e muito erotismo. À sua maneira, eles eram o sujeito e o objeto de suas artes (COHEN, 2002, p. 30): eles mesmos produziam tudo desde o cenário até as roupas, as luzes, a cenografia, as músicas e, sem o saberem, já estavam atuando.

Causou estranheza o fato de que a peça aconteceria em um ambiente predominantemente religioso, mas isto não foi à toa, afinal, o propósito do grupo era trabalhar com ideias impactantes razão pela qual, em maio de 1974, no Colégio São Bento, estrearam uma peça que misturava dramaturgia e filosofia com temas proibidos utilizando, ainda:

Clássicos do teatro, como Hermilo Borba Filho e Jean Genet, com intervenções em cenas de nudez, erotismo e o mais puro deboche, além de todas as provocações, seriam algumas das marcas que o Vivencial carregaria por toda a sua trajetória (SANTOS, 2014, p. 60).

Evidentemente, os monges não receberam bem a proposta e a expulsão deles não tardou. O local seguinte para as apresentações, também em Olinda, foi o Teatro do Bonsucesso, já com o nome definitivo de Grupo de Teatro Vivencial Ltda. O dinheiro que ganhavam ainda não era suficiente para se manter e, por isto, precisando se capitalizar, trabalharam arduamente para, finalmente, terem um lugar só deles que viria a ser a sede do grupo.

O local onde o Chão de Estrelas realizava seus shows lembrava um cabaré, teatro ou bar e a impressão que se tinha era de um ambiente singelo, desprovido de luxo, mas com muita luxúria, muitas lâmpadas, um ambiente brega e um cenário pobre, mas que fazia o maior sucesso por ter suas paredes cobertas com quadros e ricamente adornadas por páginas de revistas com variações policromáticas.

O desejo de mostrar a funcionalidade do filme aqui trabalhado revela a percepção do diretor que, oportunamente, soube usá-la e para tal cito Sartre que, em sua fala, se refere à mensagem como uma forma de comunicação que “não deve em caso algum ocupar-se das coisas temporais; não deve tampouco alinhar palavras sem significado, nem procurar apenas a beleza das frases e das imagens: a sua função é apenas passar mensagens” (SARTRE, 2004, p. 24). Para o autor, independentemente do grupo que faça uso da mensagem, seu conteúdo deve ser claro, indistinto e ter como objetivo final o público. Pelo fato de Clécio Wanderley ter sido foi inspirado em Guilherme Coelho, ex-Vivencial Diversiones cuja vida foi marcada pelos desentendimentos com seu pai, ousando ainda mais, Lacerda trouxe outra semelhança quase imperceptível para eles: o terço que Clécio segura é uma referência à vida religiosa que Guilherme teve no mosteiro beneditino.

Os Dzi Croquettes e os personagens de Tatuagem tinham em comum o aprendizado das alegrias e desafios que todo grupo enfrenta e, não raras vezes, esses grupos assumem o lugar da família mas, neste caso, eles viviam como uma família e, mesmo com todos os problemas que os núcleos familiares têm, eles aprenderam a conviver e a resolver problemas, defeitos, erros e acertos. Essa noção de família continuava e era visível na produção dos cenários, nos figurinos, nas relações pessoais e nem por isto suas vidas brilharam menos, ao contrário, nas horas de maior tensão, eles sabiam resolver seus impasses pela fraternidade e carinho de uns pelos outros e nunca lhes faltou brilho. Desta maneira, tudo parecia funcionar, o que era visto no cenário através das inspirações, nas festas, alegria, cores, corpos nus. Eles viviam transgredindo pelo exagero, pela sátira religiosa e zombaria com os símbolos pátrios. O Fotograma 37 ilustra um desses momentos.

Fotograma 37 − Clécio Wanderley: a “dragonesa”

Fonte: Tatuagem (2013)
A dragonesa de Clécio (Fotograma 37) é uma alusão aos Dragões da Independência[36] e se refere ao dragão que cada um tem dentro de si, em menção às palavras do personagem: “Todo presidente tem o dragão da independência que merece. Todo São Jorge tem o dragão guerreiro que merece. Todo Chão de Estrelas tem a dragonesa que merece! Boa noite, Chão!”. Fica claro, para Galvão (2017, p. 25), a personalidade multifacetada do personagem quando Clécio aparece com roupas que parodiavam os generais do exército.

Nossos personagens não descansavam e, além de trabalharem a logística da peça, tinham problemas maiores para resolver, como os militares, sendo preciso ludibriar o sistema para que não fossem a todo momento penalizados. Os censores tentavam desacreditar ao máximo o material a ser fiscalizado e, com o grupo, não seria diferente, por chamar a atenção por sua filosofia comunista, pelas citações de nudez bem como pelas piadas em relação ao regime e, assim, os militares estavam sempre em alerta. O Fotograma 38 revela um desses momentos em que o censor proíbe o show sob a alegação de nudismo.

Fotograma 38 − O censor

Fonte: Tatuagem (2013)
A censura era comandada por agentes que não entendiam os meandros da cultura ou da arte, cabendo aos censores apenas obedecer ao que lhes era ordenado e, independentemente do material apresentado, sua função era aprovar ou reprovar, não cabendo discussão nem qualquer tipo de argumento. No diálogo a seguir está um fragmento desses impasses: “Não tem mais nem menos mais [...] flagrante atentado contra os valores da pátria, da família e do pudor, na ponta da lança tem suas apresentações suspensas de forma irrevogável e irrecorrível, ordem superior é para ser cumprida! Acabou!”.

O censor justifica seu diálogo por entender que os corpos na peça apareceriam nus mostrando o cu, as genitálias, os seios. Clécio, por sua vez, chegara à conclusão de que haveria um infiltrado do regime no grupo e a desconfiança se acirrava pelo fato de o censor saber o conteúdo dos documentos apresentados e terminar negando a autorização e, consequentemente, cancelando o show.

Todos pagariam por suas escolhas e Clécio, ao realizar o show de nudismo, teria seu teatro invadido pela polícia, Fininha, ao optar pela companhia de teatro, foi surpreendido pelo soldado que o beijara no quartel e que agora é o capitão que comanda a invasão policial, assim, toda escolha tem um peso que acarretará mudanças interferindo significativamente em seus destinos. Quando Fininha tatuou o “C” de Clécio, no peito, ele teve a opção de fazê-lo ou não, ao fixar a marca em seu corpo como uma forma de demonstrar seu amor por Clécio para acabar com qualquer desconfiança, ele passa também a mensagem de que ele é dono do seu corpo e, com a simples escolha de fazer algo a si, ele se desgarra, se liberta, se solta.

Com o fim do espetáculo, cada personagem segue o seu destino. Clécio, sem Fininha, continua em Recife com sua ex-mulher e o filho e ainda se mantém no comando do Chão de Estrelas mas, então, mais precavido e vigilante depois da atuação da polícia. A esperança do Brasil país do futuro, para ele, agora, é o amor pelo filho e por Deuza sem abrir mão do espetáculo que não pode parar. O filme mostra novas propostas de núcleos familiares e, a este respeito, trago Berenice Bento, que positiva tais modelos na vida de Clécio e seus amigos, novas proposituras de formação familiar. A configuração papai/mamãe divide espaços com os núcleos familiares modernos, modelos inovadores “a partir de diferenças sexuais” e as possibilidades se fazem presentes. O lar continua como espaço espiritual e filosófico, mas, agora, discute-se homossexualidade e sexualidade dentro dos jogos e os desdobramentos das concepções familiares. (2013, p. 275)[37].

A vida de Fininha, por sua vez, parece um drama melancólico e, quando ele decide partir para São Paulo, sem gritar, como faziam, na praça pública, isto o silencia mais uma vez e o silêncio toma conta de seu ser. Na capital paulista, seu grande ressentimento era, justamente, não ter conseguido uma vaga de trabalho justamente por causa da tatuagem gravada no peito que, agora, mais lembrava uma cicatriz do que uma mensagem de amor. Com uma carta em mãos, o nome que aparece é Arlindo e, naquele momento, ele teve a sensação de que o Chão de Estrelas e Fininha não existiam mais.

O que percebo é que, ao optar por deixar o estado de Pernambuco, “a máquina estatal” conseguiu docilizar seu corpo através da ideologia militar, mesmo não fazendo mais parte das forças armadas, que ele tinha a impressão de que seu passado continuava “sujo”. Sua vida se resumiu a isso: Arlindo conheceu o Chão de Estrelas, vivenciou experiências nunca imaginadas e, ao sair do grupo, voltou a usar o nome de Arlindo.

Percebo que tais mudanças representam a dualidade do personagem que, durante a sua participação, ora era Fininha, ora era Arlindo, ora era cunhado de Paulete, ora amava Clécio e, em meio a esses dilemas, ele acaba o filme como Arlindo, ao escrever para sua mãe: “Beijos, com muito amor e saudade, seu filho, Arlindo”. Clécio finaliza a sua participação no filme em seu carro com o olhar distante e igualmente reflexivo, quase que em um isolamento, ao som da trilha “Valete”, de Lirinha. Na companhia de Deusa e Tuca, eles prestigiarão a estreia do filme “Ficção e Filosofia”.

Na literatura e na dramaturgia contemporâneas, cinema, teatro, performances, o sujeito se depara na difusão para além das fronteiras, descortinando não propriamente o fundo de verdade que demanda da relação ficção e vida e sim dos instantes híbridos que instauram heterotopias que se circunscrevem de modo expressivo por intermédio do corpo (GARCÍA, 2016, p. 113-114).

Mais experiente, Arlindo segue a sua jornada lembrando do Chão de Estrelas por ter lhe proporcionado mudanças pessoais e profissionais a ponto de transformar seu futuro, decisões que não poderiam mais ser ignoradas. Suas escolhas foram sedimentadas pela arquitetura social, familiar; seu corpo e sua mente estavam voltados para uma nova etapa, para além dos grilhões do quartel ou da “indecência” do teatro, mas, apesar da dor da separação, ele aprendeu muito nesse período em que se relacionou com Fininha.

Por ironia do destino, em uma de suas últimas aparições, Arlindo está reflexivo sentado em uma cama do quartel e, em seu silêncio, se despede mentalmente do que aquele lugar representou. Sozinho, sem amigos, ele é o resultado que simboliza um aparato ideológico perverso pensado séculos atrás e que se mantém até os dias atuais incutindo o medo aos que pensam em ver a realidade de outra forma. Como “retirante”, de malas prontas para São Paulo, ele opta por uma nova jornada ao som nostálgico de “Bandeira Branca” interpretada por Dalva de Oliveira, e o filme termina de forma melancólica semelhante ao do documentário Dzi Croquettes com a música “Dois pra lá, dois pra cá” cantada por Elis Regina.



3.1 ESTADO DE ARTE: POLÍTICAS ANAIS

A linguagem cinematográfica em Tatuagem acontece o tempo todo na forma de diálogos claros e eloquentes cuja principal intenção é passar ao público a clareza dos diálogos e, principalmente, o enredo do filme em questão. Neste caso, ela promove a consolidação do discurso de gênero através das principais características do filme, ou seja, a impossibilidade da relação entre Clécio e Fininha, o “escândalo” da letra e a proibição da polka do cu, entre outros. Em seus diálogos, há um horizonte social que permite compreender a proposta da linguagem e dos diálogos tanto para o público do filme quanto para o público leitor.

A relação entre o modelo discursivo e o estado de arte, em Tatuagem, discute as várias possibilidades que tem o corpo de transformar e formar opinião pela política da interação e seu discurso está relacionado ao contexto contemporâneo; como expressão cultural, Tatuagem, dentro de seu imaginário, apresenta uma relação entre a história do Brasil na década de 70 e a linguagem que as pessoas insatisfeitas com o regime utilizavam. Não se trata de uma versão romanceada nem de dilemas pessoais, trata-se de um momento histórico associado a um grupo que mostra mais do que corpos, mostra homem corajosos, gays, sem vergonha de sua sexualidade, pessoas que transmitem determinada mensagem para o publico gay e o publico simpatizante. O filme funciona como um instrumento de pesquisa associado às práticas cinematográficas como um elo para as ciências sociais.

Percebe-se o processo inverso da familiarização, em Tatuagem, pois, na verdade, o que identificamos é uma espécie de “desfamiliarização”, ou seja, os velhos dogmas da família são trabalhados sob outros vieses. Nessa proposta, nega-se os preceitos familiares pregados pelo binarismo que estabelece quem é “o macho” e quem é “a fêmea” da família. Nos novos elementos de núcleos familiares, a velha formação clássica de família baseada nos elementos religioso, afetivo e paternal, ligada à tradição, sofre mudanças, havendo o enfraquecimento de uma sociedade que não se preparou para as mudanças sociais. Quando Adorno (1977) diz que “a origem social do indivíduo (a família) revela-se no final como a força que o aniquila”, ele alude a Kafka sobre as transmutações e às novas variações ou mudanças que essa entidade significa (ou significava). Tudo muda, nada é constante e, nesse caso, foi preciso sair do território seguro do que se conhece por família para fazer parte de outro território e nessa desterritorialização conhecemos múltiplas formas de conviver juntos a partir das novas formações familiares, ou seja, “em família mas sem ser família”, uma verdadeira metamorfose.

Em Dzi Croquettes, o gênero é trabalhado sob a ótica do reconhecimento como construção cultural e social, infelizmente não reconhecida na sua totalidade pelas autoridades, e, mesmo assim, prevalece a exposição dos corpos, o sexo, as diferenças de comportamento principalmente na filosofia. Cito Butler, em “Problemas de gênero”, como referência quando ela assegura os percalços sobre o real significado conceito de gênero e, mesmo sob a influência foucaultiana, questiona a sua materialidade. O conceito de gênero é substancialmente diversificado e, dentre as tentativas de buscar conceituá-lo, o que mais tem a ver com a verdadeira interpretação é quando Butler diz que “cabe à legitimação dessa ordem, na medida em que seria um instrumento expresso principalmente pela cultura e pelo discurso que inscreve o sexo e as diferenças sexuais fora do campo do social”. Para a autora, fica claro quando ela diz que é visível que o termo prende o sexo e impede seu alcance ao criticismo da desconstrução.

O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado […] tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos. (2017, p. 25).

Dessa forma, o papel do gênero seria produzir a falsa noção de estabilidade que diz que a matriz heterossexual estaria assegurada por dois sexos fixos e coerentes os quais se opõem como todas as oposições binárias do pensamento ocidental, macho x fêmea, homem x mulher, masculino x feminino, pênis x vagina etc., um discurso que leva à manutenção de tal ordem de forma compulsória.

Embora Tatuagem retrate uma realidade de três décadas atrás, sua proposta pode ser considerada contemporânea por trazer uma visão dos dias atuais. O filme é mais do que um projeto fílmico, ele funciona como uma espécie de retomada do cinema brasileiro e trabalha temas ainda considerados tabus para parte da sociedade brasileira rançosa pelo patriarcalismo quando se refere a temas que dizem respeito a sexo entre homens.

As produções, mesmo modestas, que começam a despontar para a temática gay, nos filmes nacionais[38] nos quais se trabalha a identidade baseada na diversidade sexual, fluem e dão novos rumos e identificações aos gêneros que o cinema propõe como, por exemplo, o novo cinema queer como algo carregado por estéticas híbridas, intersexuais, transexuais. O que, de fato, ocorre em Tatuagem são ideias que Lacerda incorpora para enriquecer ainda mais, a procura por mostrar a construção do gênero e a sexualidade, de forma alegre e colorida. Nele, os corpos esguios e magros, longe dos padrões de beleza hollywoodianos têm como proposta alcançar a comunidade periférica e, graças à cinematografia, o diretor consegue esta façanha ao transformar o filme em uma ideia conciliadora na qual o cinema alberga os que se identificam com o Chão de Estrelas lugar em que viados, bichas, gays, homossexuais, transgêneros e/ou bissexuais fazem parte da engrenagem social como se fossem peças de um sistema que insiste em negá-los na sociedade. Mas, mesmo o sistema agindo contra eles, é inevitável que os LGBTQI+ são ferramentas que tornam essas pessoas possíveis, juntos eles são como uma espécie de mecanismo transformador para um país mais justo. Deste modo o desejo do Chão é o de que as pessoas sejam livres para que isso lhes traga felicidade, cada qual com seus desejos, uma visão inclusiva como uma forma de confrontar a heteronormatividade configurada pelo homem branco.

Esses sujeitos são mais do que desviados, eles são pessoas que se associam às modificações do tecido urbano e, através de suas propostas políticas, circulam e se adaptam. Importante destacar que a maneira como eles convivem e pensam sobre a sexualidade, o sexo e o desejo de praticá-lo amplia e enriquece os conhecimentos sobre a produção de corpos dissidentes. Para as autoridades, “esse corpo diferente” precisa ser “corrigido”, logo, cabe a elas perceber as formas de “disciplina” que a sociedade oferece, como hospitais, escolas, igrejas, a fim de eliminar as políticas associadas ao corpo e, em especial, as políticas comportamentais cujo controle deve ser maior e mais eficiente, sem a “(verticalização, privatização do ânus, controle da mão masturbadora, sexualização dos genitais etc.” (PRECIADO, 2017, p. 12).

O pensamento de Preciado nesse sentido é perfeitamente cabível na proposta de Tatuagem, que trabalhava a ideia no sentido de que os desejos sexuais são possíveis e, ao ser beneficiado pelas mudanças, pela proposta deles no palco, pacifica-se os entendimentos, daí a necessidade de eles irem além do determinado, cruzar a barreira significando dar uma voz à liberdade dos homossexuais. O medo ali era transformado em poder, de forma a não mais assombrá-los, mas a confrontar os que causavam o temor de enquadrá-los em um padrão, em um exemplo clássico. Fininha fez isso quando enfrentou seus medos, libertou-se do armário, viveu intensamente um romance e, ao amargar a sua saída do exército, se dispôs a seguir em frente e investir em outro lugar maior e mais distante: ele não desistiu de seguir em frente ou de procurar a sua felicidade em outro lugar.

A arte proposta em Tatuagem (2013) mostra tentativas e ajustes, erros e acertos e nela se destaca o papel fundamental da filosofia culta em um ambiente brega, pois, no cabaret, as pessoas desejam mais do que um lugar em que o desejo pode estar à flor da pele ou em um olhar e o Chão de Estrelas prima pela subjetividade dos corpos. Para a trupe, não há diferença e sim o gosto de pessoas que discutem os prazeres da vida, as escolhas, pessoas à frente de seu tempo para as quais tais manejos, danças entre um copo e outro resultam em corpos em perfeita sintonia. Esses sujeitos são representados no pensamento de Paul Preciado quando diz:

Em tais análises dos processos de subjetivação, está implícito um novo conceito de corpo: corpo máquina (Deleuze-Guattari), plataforma tecno-viva (Donna Haraway), “corpo performativo” (Judith Butler) [...] e sua capacidade para funcionar como órgãos, com os objetos de consumo, com a máquina e seu movimento, com os sistemas de signos e sua inscrição codificada [...] de representação (2017, p. 12).

Em Tatuagem, os corpos experimentam diferentes arranjos, cada personagem tem sua história, ajuda na construção e acompanha as mudanças sociais no Brasil e, cada um à sua maneira, faz as coisas acontecerem, pois este é um processo que, para funcionar, precisa da participação de todos, por dizer respeito a cada e impedir seu avanço pessoal e o Brasil do futuro precisa de pessoas performáticas tecnicistas, mas precisa também de pessoas que fumam maconha, dançam nus, fazem sexo e cantam boleros.

Quando Lacerda trabalha sentimentos como amor, aceitação, negação e traição, ele permite ao Chão de Estrelas criar ordem em um caos dominado pelo tradicionalismo que imperava nos teatros. Dentro dessa quebra de paradigmas, ele coloca a “práxis do improvável junto à epifania da desordem” como dito por Clécio Wanderley ao provocar em outro personagem um estranho prazer até então não pensado na vida do personagem Fininha. Nesse caos a ordem impera sob a forma de um romance, ou seja, um caso não pensado em suas vidas.

No palco, não há proibições, não há regras, não há disciplina, há sim o desejo de ser feliz sem rótulos, referências, classificações ou limites que indiquem cerceamento e a celebração de corpos, de performances sensuais e sexuais e os atores vivem as dissidências do sexo e do amor pela arte. Aqui, é pertinente citar o pensamento de García e Thürler sobre o sujeito que se encontra na zona limítrofe ou nas margens por “incorporar críticas culturais em sintonia com as dissidências sexuais, aos gêneros e às móveis posições para sujeitos que não se enquadram aos padrões atávicos da heteronormatividade” (2018, p. 6). Percebe-se, nessa citação, o sujeito em sintonia com o meio, com as propostas que, no caso do soldado Araújo, (Fininha) vive em um ambiente reprodutivo/heteronormativo.

Durante os meses de preparação deste trabalho, precisei pesquisar muito sobre obras que mencionassem meus recortes e, em minhas perguntas, encontrei algumas questões das quais me guarneci para chegar às minhas considerações, portanto, agradeço a eles por balizarem minhas buscas e servirem de base para a construção das palavras que aqui escrevo[39].

O conhecimento é fundamental (ZUMTHOR, 2018) em nossas vidas, para nos fortalecer e compreender como enfrentá-la sabiamente e este foi o caso de Tatuagem, onde, através de uma política queer, a arte pôde ser pensada. Percebo que o conhecimento é inerente ao homem, sua presença no mundo das artes é possível graças ao corpo performático beneficiado pelo dom de fazer e ser arte através do encanto, neste caso, as performances vividas no universo de Tatuagem. A política queer se faz presente, a todo momento, os personagens assimilam a proposta queer no sentido de ignorar as ofensas pejorativas sobre sua sexualidade e comportamento e de que as identificações atribuídas ao gênero não são relevantes, nem normativas pois a indiferença, para eles, anula o pensamento binário.

A realidade não podia ser ignorada, afinal, a polícia tinha seus meios de saber o que acontecia e, por sua vez, também eram ignorados os conceitos de comportamento, de como se comportar, pois os corpos se sentiam empoderados a cada vez que lhes eram atribuídas ofensas como marginais, desviantes ou transgressores. A forma de darem o troco ocorria por gestos e gritos, pelas “plumas e paetês” esvoaçando, colorindo o ambiente e eles faziam questão de dizer que não se enquadravam na ditadura comportamental, lutavam contra a heteronormatividade e, ao fazer isso, eles denunciavam as buscas e sabotavam seus perseguidores, posto que a sexualidade não era um problema a ser resolvido devendo ser respeitadas as qualidades atribuídas ao sujeito gay e a mais ninguém. Quando me refiro ao termo queer, mesmo sabendo que a palavra só viria a existir uma década depois, os trejeitos queer já eram perceptíveis nas duas produções, que retratam comportamentos, abominam conceitos que têm a ver com o binarismo, pois as ideias cis faziam possível a existência do universo homofóbico, e tal ojeriza é sentida até hoje pelos GLS (hoje LGBTQI+) e, no caso de Tatuagem, a política comportamental queer desconsidera o que seja contra as ideias que indiquem diferenças.

Os personagens, neste filme, também fazem uso da linguagem corporal para expressar seu descontentamento, rompendo desta forma com as fronteiras de gênero imposta pela heterormatividade visto que o personagem gay não é somente mais um personagem, ele é a representatividade de pessoas que, como ele, têm que vencer os desafios por causa de sua sexualidade ou orientação sexual. Ele não é só mais uma identidade, é um ser complexo com qualidades e defeitos, rico em trejeitos e poderoso nas suas falas e, quando está no palco ou na tela é muito mais do que o papel que desempenha, é a representatividade de pessoas que se identificam com ele, veem nele uma força que, por vezes, lhes falta e mesmo assim não deixam de admirá-lo.

Tatuagem se fez presente através de seus personagens sintonizados com o pensamento queer, em abordagens que representavam a identificação pela diversidade LGBTQI+. Quando os atores representavam, nessas intepretações eles reproduziam cenas do cotidiano ilustrando como uma pessoa pode ser frágil e, ao mesmo tempo, forte o suficiente para não se deixar vencer pelas artimanhas políticas e conscientizavam as pessoas para a construção de identidades. Cabe ao intérprete o papel de tornar o pensamento uma realidade, razão pela qual, em suas atuações, eles variavam do drama à comédia, da crítica à zombaria. Não obstante, eles eram profundos, essenciais, principalmente quando se tratava de dilemas complexos, e nessa situação, menciono a relação de Clécio e Fininha, bem como de conflitos que incomodam os homossexuais que ainda não se assumiram. Nesse processo, a docilização, representada pelo censor da ditadura militar em relação aos personagens, tem como objetivo anular os corpos,.

Dentro da perspectiva queer, a construção dos corpos não é ameaçada por limites ou controles, as pessoas não ficam mais paradas, elas seguem adiante, transpassando o ponto proibido e, agora, graças às novas propostas de diversificação de gênero, há uma aproximação das políticas queer que enfraquecem “a resistência aos enquadramentos heteronormativos denunciam o caráter de construção social das categorias de corpo sexuado, gênero e sexualidade, provocando um rompimento com essas estruturas como dadas essencialmente ao indivíduo (BUTLER, 2017).

Ao mostrarem o cu, a política é desmantelada significando um enfraquecimento para o pensamento heteronormativo, pois, assim, ressignificam-se as armas utilizadas como estratégia queer de forma a este ato ser compreendido como uma metáfora para o que se considera proposição política: quando eles mostram a bunda, o significado é mostrar que nem tudo se encaixa no sistema, bem como que a insatisfação culmina em provocações e, desta maneira, os excluídos, que antes faziam parte da massa esquecida, agora fazem parte do grande coro de vozes disposto a enfraquecer o discurso histórico defendido desde a colonização. Daí a ideia do deboche com bundas e cus expostos, significando um rompimento, uma descontinuidade com as proposições que defendiam o gênero ou que enquadravam o pensamento em normas binárias.

Quando Butler (2017) toma para si a discussão das identidades de gênero, ela cria uma visão não essencialista com o propósito de desconstruir as divisões de gênero; percebe-se e, em Tatuagem, onde não há divisões de homem ou mulher, macho ou fêmea, os personagens são, à sua maneira, o que lhes traz prazer ou os satisfaça, sem máscaras ou ocultamentos, apenas o sujeito como ele se vê. Inexiste a possibilidade de ações fora das práticas discursivas, pois não se trata de repetir esses discursos e sim da desvinculação do corpo sexuado, de forma que o gênero passa a valer como outras identificações que parodiam as categorias que rejeitam a imposição e reiteram a diversidade.

Mostrar o cu não é um insulto, como sempre foi entendido, agressão é, sim, impor ao indivíduo algo que vá de encontro à sua vontade e não é um modelo a ser seguido, é um modelo a ser combatido. Em Tatuagem, tudo é politicamente incorreto, tudo varia, desde a localização do Chão de Estrelas, os cenários, o ambiente em si; todos os elementos são fora da realidade do ambiente “salutar” e, ao mesmo tempo, funciona como um local onde o si mesmo tem uma personalidade, uma identidade capaz de parodiar as grandes casas de espetáculo internacionais sem perder o glamour de um cabaré na periferia de uma grande cidade nordestina.

Ainda de acordo com Butler (2017), as experiências passam por processos de compreensão, o que torna fácil entender as paródias do gênero que envolvem a afetividade com os atores não somente mantendo as características de homem ou mulher, ocorrendo um empréstimo na construção do perfil desses personagens cujo objetivo é desconfigurar os estereótipos machistas, visto que a performance não está ligada a nenhum tipo de corpo. Dessa maneira desestrutura-se a equivalência entre gênero e sexo determinada pela imposição heteronormativa.

Os enredos apresentados tanto em Dzi Croquettes como em Tatuagem vislumbram, antes de tudo, a família, no Chão de Estrelas, por agregar pessoas de vários lugares, orientações, credos, fantasias e (pasmem!) até um militar, o que torna o pensamento de família agregador, pois, mesmo que eles vivam nesse caldeirão de gente, há uma separação, se comparada com a rigidez do quartel, existe uma flexibilização relacionada ao teatro pelas cores, que mudam do verde oliva para o rosa choque, ou pela batida da música marcada pela cadência da marcha militar cujo ritmo, no Chão de Estrelas, se transformará na melancolia do álcool do bolero filosófico (Dj Dolores).

No pequeno teatro, as músicas conduzem as performances nas quais seus interlocutores cantam filosofias libertárias. Sobre a variação de apresentações, em uma delas, destaco o monólogo de Clécio que pergunta: “Mas afinal o que é liberdade?”. A resposta é enfática ao dizer que “o objeto do desejo é a liberdade, a arma para alcançá-la é o deboche”. Os conceitos existentes dentro dessa resposta dizem que é preciso ridicularizar os que nos atormentam e machucam e, pelo discurso político anárquico, expressar a vontade de libertar nossa sexualidade reprimida como uma espécie de transe contra a opressão.

A sociedade disciplinar a que aqui me refiro é aquela que opera dentro das normas ditadas pelas instituições cujo intuito é o fortalecimento e o domínio através da vigilância constante (FOUCAULT, 1987) e da doutrinação das pessoas, ou melhor, do adestramento com foco no comportamento, pois, com o corpo já docilizado pela máquina atuante desde os primórdios coloniais, fica mais fácil para o sistema “enquadrar” (ou, pelo menos, tentar), por exemplo, o personagem de Jesuíta Barboza duplamente vigiado como soldado no exército (disciplina militar) e pela família (religiosidade).

Nos momentos finais do filme, trabalha-se o cu sob diferentes aspectos, é o vislumbre do “ânus” (maneira politicamente correta de se referir ao cu sob a ótica militar e cristã) que, aqui é trabalhado sob o aspecto literal como ferramenta de protesto político. No capitalismo, os órgãos funcionam como uma espécie de privatização e, no filme, o cu também é mencionado como um órgão privado, porém, sob o viés utópico que o transforma em um estilo “estético-político” usado como recurso reapropriado pela subversão.

A utopia do cu merece destaque pela ousadia do ritmo polka musicalizado pelo Dj Dolores e, neste embalo, a simbologia do cu se torna antagônica pelo embate proposto por Lacerda ao confrontar a moral e fazer surgir o significado do proibido sobre a arte. Aqui é oportuno citar Deleuze quando se refere ao papel que a arte desempenha: “A obra de arte não contém, estritamente, a mínima informação, existe uma afinidade fundamental entre ela e o ato de resistência. Isto sim. Ela tem algo a ver com a informação e a comunicação a título de ato de resistência” (1999, p. 11).

Fica claro neste recorte que, no pensamento de Deleuze trazido para a baila do cu, há uma reinvenção de conceitos que falam de resistência e revelam seu desprezo pela forma como a sociedade via a arte. Nas palavras de Deleuze, é possível produzir um corpo sem órgãos. Para Lacerda, esse cu performático justificava a criação de aspectos que indicassem, através do tom pejorativo do órgão, um instrumento político que se valia de questionamentos sobre os valores sociais como se fosse algo literalmente sujo ou uma deformidade obscena e que, tinha-se a impressão que ao pronunciar a palavra soaria como uma ofensa. O cu, nesse caso, não é retratado pelo aspecto corporal, mas pelo viés cultural e político, ou seja, seu significado mudaria a forma de ressignificar seu conceito. Daí a afirmação de que a performance é o discurso que, em Tatuagem, busca romper paradigmas sociais com os quais se acusa personagens que não “seguem a mesma cartilha”, “não rezam a mesma missa”, pois, ao se recusarem a obedecer às normas, eles mudariam ideias, opiniões e conceitos, fariam da arte algo revelador.

Sempre que um governo autoritário assume o poder, suas primeiras medidas são no sentido de eliminar qualquer ameaça a ele e a resistência é a primeira a ser combatida, logo, toda forma de repressão contra o corpo conta, pois são os corpos, nessa dinâmica de perseguição, que sofrem as ameaças de agressão ou as tentativas de docilização. Felizmente, não são todos que se submetem passivamente a esses arbítrios, sempre há os que farão resistência aos desmandos totalitários. No caso do Chão de Estrelas, retratado no filme Tatuagem, fica evidente que os corpos e a linguagem anárquica utilizada pelos personagens gays, sob o comando de Clécio Wanderley, ganham corpo e voz.

Ao mesmo tempo em que a ditadura militar conduzia o país com severo controle, isto favoreceu o surgimento de movimentos que se tornariam seus grandes opositores e, dentre eles, os artistas se fizeram presentes nessa nova realidade politica. Na área das artes, o teatro desempenhou um papel fundamental no sentido de atuar como um corpo discordante, pois, através de meandres artísticos eles conseguiram driblar o controle da censura e transmitir sua mensagem. Alguns grupos foram além disso e passaram a usar o deboche por meio de seus corpos tripudiando a ordem vigente. Nessa tentativa de ridicularizar o regime, eles se destacariam por vários motivos dentre os quais a inversão dos papéis, pois homens apareceriam travestidos de mulheres, mas não eram mulheres, para provocá-los mais ainda, eram gays que tripudiavam os papéis historicamente estabelecidos de homens “machos” ou heteros.

O viés cultural e político utilizado pelo Chão de Estrelas faz alusão ao cu, mas não no sentido da parte do corpo higienizada e sim da imoralidade política, da depravação social, da ironia disciplinar. O cu democrático tem uma conotação diferente, ele é censurado pela lei, nele não há diversão, tudo é ilícito, é imoral mas vive provocando e chocando os defensores do conservadorismo. Em sua utopia, o cu é livre e igual, não apresenta resistências nem dificuldades para ninguém, ele é irrestrito e propício às diversidades.  expressados através das provocações, eles almejam algo pois, quanto mais insultado, até mal O cu político de Tatuagem defende a proclamação utópica do discurso escandaloso e subversivo como um lugar que desafia a normatividade ética-visual e, ao se apropriarem desse discurso, com os xingamentos e insultosfalado e ofendido, mais fortalecido ele sai. Pela ótica capitalista, o cu foi o primeiro órgão que foi privatizado, porém, no filme, ele promove, utopicamente, uma transformação social que anuncia a verdade, como se fosse fizesse parte da construção de outro mundo onde ninguém teria vergonha de tê-lo.

Em Tatuagem, o cu desempenha um papel de desterritorialização das relações socioculturais incutidas pela norma disciplinar e é apresentado como um emergente contemporâneo que, mesmo sendo recusado, é reapropriado pelo Chão de Estrelas não mais como parte do corpo e sim como um instrumento que questiona o porquê de sua proibição e até mesmo de seu uso. As simbologias que o cu oferece em Tatuagem traduz um discurso cuja performatividade ocupa um espaço de “corpos sem órgãos, corpos abertos aos fluxos e aos desejos, criador de mundos” (DELEUZE; GUATTARI, 2010). As possibilidades de um cu sem pudor ocorria no sentido não figurativo da palavra, mas literal, pois a mensagem era dar uma nova abordagem sobre esse corpo sem órgãos descrito por Deleuze e Guattari com investidas que favorecessem o desejo como agente transloucado e sem medo do que ele realmente representava.

A transformação desse órgão em espaço político alude ao pensamento queer como se fosse um espaço público onde se fazem articulações, vigilâncias, olhares, brincadeiras, proibições e, assim, nesta nova ocupação do espaço, o cu é visto como corpo político anal ou terrorismo anal (PRECIADO, 2009). Quando o grupo apresenta a Polka do Cu, a força de expressão fala, o medo some e expressar esse cu é um ato que, mesmo com as normatividades proibitivas, proporciona a multiplicidade, nesse universo artístico, mais do que de modos de vida, sua produção associada ao desejo do próprio corpo agora sob outro olhar mais crítico, evidencia os personagens com um tipo de coragem que destaca e proporciona ao cu um desejo libertador que, geralmente, os detentores do poder não entendem o que significa, não aceitam ou não querem ouvir que o cu é assim, tem esse poder de desafiar, enfraquecer o sistema e fortificar os esquecidos por eles.

A repetição do coro na Polka do Cu − “tem cu, tem cu, tem cu” − é proposital, como se fosse um mantra, para que a ideia justamente se fixasse no pensamento do público a fim de que eles cantassem também e, embora pareça agressivo, as estrofes são divertidas e espontâneas, menos para quem tem “medo do cu. O fato é que a palavra está distante de ser desrespeitosa, se comparada com o real significado dado pela sociedade puritana que é infinitamente mais nocivo. Ali ele não é mais visto como se fosse um órgão de exceção ou como uma continuidade do corpo e sim como uma parte que serve de entrada: é uma abertura que possibilita a universalidade sem gênero e funções específicas. Mais do que um enunciado subversivo, ele é a representação e a possibilidade de resistência “política” e, agora, é uma peça fundamental nas engrenagens das políticas do corpo, não é mais uma prisão, não controla mais o corpo, é algo que dá novas interpretações e significados a si e ao corpo e enfraquece o pensamento nocivo do dominador através de suas subjetividades.

A escolha do cu ofende, sim, mas não no sentido literal ou figurativo da palavra: ele é um órgão desprovido de vaidade, nele existe beleza e valores trabalhados sabiamente pelo Chão de Estrelas, e mais ainda quando eles nos agraciam com a letra satírica e ácida, como mostra o Dj Dolores no recorte abaixo da Polka do cu:

Tem cu que é amarrado
Tem cu escancarado
Tem cu muito seboso
Tem cu que é bem gostoso
Tem cu que é uma bomba, que quando peida zoa
Tem cu que sai da linha
E tem cu que é uma gracinha
Tem cu, tem cu, tem cu...
Tem cu para todos
Tem cu para mim
Tem cu para você
Tem cu para dar, cu pra vender
Tem cu que tem medalha
Tem cu do coronel, que traz felicidades a todos do quartel
Tem cu carente
Tem cu que é de parente
Tem cu que é dos outros
E tem o cu da gente
Tem cu, tem cu, tem cu...
O papa tem cu
O nosso ilustre presidente tem cu
Tem cu a classe operária
E se duvidar até deus tem um onipresente, onisciente, onipotente cu
A única coisa que nos salva, a única coisa que nos une, a única utopia possível é a utopia do cu.

A impressão que o leitor e o publico recebem é de um um espetáculo ímpar, onde o cu aparece verdadeiramente sem pudores, “sem tapa-sexo”, verdadeiramente como ele é, na verdade ele é um dos elos fundamentais do corpo associado ao significado da musica, nela o cu é associado ao todo, a um conjunto de órgãos e membros que rescindem com toda a censura atribuída injustamente a ele. O cu livre, leve e solto albergado pela companhia de teatro é mostrado de forma artística, “nua e crua”, como se vê no Fotograma 39.

Fotograma 39 − A Polka do cu

Fonte: Tatuagem (2013)
A dança orquestrada por Clécio Wanderley provoca e irrita os defensores da moral cristã como se fosse uma afronta ao próprio Deus pois, no show o cu é “onipresente, onisciente e onipotente” com direito ao prazer. As investidas contra o significado do cu mostram discursos articulados às práticas de vigilância, explorações, proibições, escárnios e ódio.”, de acordo com Sáez e Carrascosa (2011, p. 63) pois todo esse universo mostrado pelo Chão de Estrelas é diametralmente oposto ao pensamento social, principalmente cristão, a ideia do ilícito, do sujo, do errado é combatida pela sociedade através do pensamento e sua expropriação no sentido de mostrar um corpo político com políticas desviantes conforme Preciado (2009) que, quanto à performatização do cu, sugere que é preciso performatizá-lo, encontrar forças para desamarrar esses nós sociais que ligam o cu ao desejo. O filme de Lacerda mostra isto quando menciona o cu do presidente ou de seus generais ou ainda quando entoado como crítica aos governantes, aos representantes da democracia, pois todos tinham cu, era algo democrático, sem distinção indiferente à beleza.

Ver o cu dançando, suado e cheio de purpurina criava novas perspectivas de beleza estética que poderiam ser usadas contra o fascismo representado pelas roupas puritanas, toda vestimenta fora do padrão social, tinha o mesmo desfecho da polka do cu, mas para os que dançavam e sentiam orgulho de mostrar tais partes do corpo, ver cus de diferentes ângulos era um terreno fértil para outros tipos de protestos que envolvessem o corpo.

A mensagem da Polka do cu refletia o discurso do humor cáustico, afinal, ao dizer que o cu era democrático e que todos o tinham, ironizava o governo com o jogo de palavras, pois, na verdade, almejava-se atrapalhar a censura por mensagens que, subliminarmente, davam à linguagem liberdade e audácia já que o discurso tradicional não passava de um engodo.

Quando o espetáculo reconfigurou a apresentação da Polka do cu, isto se deu por um conjunto de elementos performáticos associados à produção musical, visual e cênica. Essas mudanças dialogam com o pensamento de Boaventura (2002, p. 238) quando diz que a linguagem “tem seu lugar no discurso para além da representatividade do significante, existe a experiência do conhecimento, há o lugar enriquecido confrontado pelas culturas da interrelação das culturas”. Pelas palavras de Boaventura, é possível visualizar esse confronto cultural pelas formas como o discurso é revitalizado nos palcos, nas músicas e, principalmente, pelo gingado das bundas na performance da polka.

O ritmo da música e o rebolado dos corpos suados e nus no musical associados à repetição das estrofes é uma forma de dizer que as pessoas se identificam com essas mudanças, são contra as represálias e a violência institucional, que não havia nada de errado em cantar um órgão que todo mundo tem, que a proposta do cu estava longe de ser uma “aberração” e fez o maior sucesso e que o problema não era dançar a polka pelado e sim ter o espetáculo cancelado pelos agentes militares e pelos agentes infiltrados no cabaré.

A tão falada dança do cu em Tatuagem tem como objetivo incutir o questionamento sobre o seu real significado de não ser mais o cu depravado que justificava sua proibição e que, associado ao real valor dos corpos cuja exibição diversificada proporcionava novas maneiras de visualizá-lo, a dança rompia a disciplina dos corpos (DELEUZE; GUATARI, 2010). A polka do cu se destacou pelo fato de o grupo reagir comicamente frente às ameaças de ter o local fechado e seu público preso; o ritmo da polka deu ao Chão de Estrelas o ímpeto de romper a ideia de um sujeito abjeto. Os militares, pela sua truculência, tinham em mente a figura do gay como alguém que não passava de um pervertido que gostava de homens e, assim, o sujeito gay era reduzido figurativamente a um cu. Segundo Boaventura (2002), o espaço tempo dos integrantes do Chão deveria ser ampliado pela possibilidade de que nem os militares impediriam o espetáculo de exibição das bundas dançantes acontecer, se o cu democrático ou a nudez purpurinada, tudo fazia parte desse universo transloucado.

A escolha da proposta de trabalhar o filme Tatuagem foi estrategicamente influenciada por trazer elementos semelhantes aos do filme de Tatiana Issa, Dzi Croquettes, por serem trabalhos que ajudaram a entender a história de nosso país e as pessoas que se reconheciam homossexuais no período turvo da ditadura e, partindo desta sugestão, me certifiquei de honrar outros filmes de temáticas parecidas que inspiraram este trabalho, dentre os quais destaco Meu amigo Cláudia (2013) e Laerte-se (2017) cujas abordagens desconstroem a sexualidade vigiada e o gênero idealizado, ou seja, pela linguagem cinematográfica as artes dialogam com a cultura dos corpos.

Como tema recorrente nesse tipo de produção, destaco a luta contra a impunidade de forma que o combate não ocorra nos “porões da ditadura” e sim aos olhos de todos, por isso, aponto o movimento queer, que utilizou a ofensa dirigida a eles como um catalizador que os fortalecia e usava os mesmos xingamentos para se fortalecer contra as humilhações.

O amor entre iguais faz parte das causas defendidas pela bandeira GLS, atual LGBTQI+, ideias que defendem a liberdade sexual sem perseguição, pregam o direito de escolha pela felicidade e não pela agressão. Aqui, cito Butler no que diz respeito a ideias cujo objetivo é o de inviabilizar as liberdades pregadas:

Queer adquire todo o seu poder precisamente através da invocação reiterada que o relaciona com acusações, patologias e insultos. É uma invocação através da qual um vínculo entre comunidades homofóbicas foi estabelecido. Essa interpelação ecoa outras interpelações passadas e une todos os falantes como se falassem em uníssono ao longo do tempo (BUTLER, 2008, s/p).

O que percebo na fala de Butler (2008) é a necessidade de um novo discurso dos que se sentem ofendidos por insultos cada vez mais frequentes por parte de um sistema que nega a união entre iguais e que, para isto, se utilizam da inércia do Estado que nada faz. É chegada a hora de um novo discurso político mais abrangente aos discriminados pela homofobia.

Infelizmente, o futuro esperançoso do Brasil que prometia ser o país do futuro ainda não chegou e continuamos à procura de soluções para que os problemas que persistem desde os anos 60 e 70 do século passado sejam diminuídos por leis mais enérgicas que trabalhem em prol do cidadão, caso contrário, nos encaminhamos para um futuro incerto ou condenado a repetir os erros de um passado fracassado. São problemas que, de certa maneira, expõem a dificuldade das pessoas de entender que o gênero faz parte do direito às escolhas sexuais e, assim, as propostas apresentadas pelas autoridades dificilmente são cumpridas como no caso dos entraves policiais que prejudicam a eficácia e a agilização dos trâmites de segurança sobre o ofendido e se percebe a morosidade nas promessas que raramente são cumpridas. A demora do Estado em agir contra os agressores e contra a perseguição aos LGBTQI+ é um terreno fértil para as ideologias racistas, homofóbicas propostas sob a promessa de representantes que deveriam zelar pela segurança e bem estar, por Tatuagem evidencia e faz parecer um filme violentamente atual.” (SALLES, 2013).

O Brasil, como toda nação em desenvolvimento, ainda não atingiu a maturidade de uma nação que respeita seus cidadãos e garante a segurança e o bem-estar de sua população, principalmente das minorias, e, não raro, sua população se revolta contra esse governo autoritário, mergulhando inevitavelmente o país em uma crise sem precedentes. Os problemas políticos, administrativos e morais surgiam dentro desse turbilhão de insatisfação e, mesmo assim, a forma como o regime resolvia “seus problemas” era através da propaganda, que alienava parte da população mostrando o Brasil como um país próspero que zelava pelo seu povo e, por isto, lutava contra a “invasão comunista” e todo tipo de ideia que fosse oposição aos pensamento do que considerava certo.

Vínhamos de uma cultura em que o governo comprava a ideia de que tudo o que era bom para os americanos era bom para nós, ou seja, éramos influenciados pela cultura dos outros, principalmente, a americana, e não tínhamos como combater isto. Cabia aos brasileiros aceitar o que era considerado ideal para nós em educação, política, segurança, saúde, ou seja, nos princípios básicos que fazem uma nação seguir adiante. No modelo apresentado pelo governo, não havia questionamentos, não havia livre escolha ou desejos de acordo com sua orientação sexual e a possibilidade de escolha pelas dualidades macho/fêmea, hetero/homo inexistiam pois tais propostas iam de encontro ao pensamento progressista conservador.

A partir desses movimentos contra o governo e por mais direitos a liberdade, o objetivo era garantir às pessoas o direito de escolher, algo que lhes satisfizesse tanto sexual com em sua realização pessoal e, para isto, era preciso novas ideias, novos meios de minar essa força desprendida sobre o cidadão que vivia com medo de ter a sua liberdade cerceada. Nesse sentido, o teatro e o cinema também fariam parte dessas mudanças e, as produções, mesmo que vagarosamente começavam a despertar para o mercado com o olhar voltado para o artista gay e o público gay. Paulatinamente, a história começaria a desfazer ou, pelo menos, amenizar o preconceito sobre as artes e, desse período em diante, até o seu ápice nos anos 90, o movimento gay faria a diferença, bem como a presença queer, que trabalhava a desconstrução dessas ideias. Infelizmente, existiam artistas que concordavam com a politica vigente. Cada um à sua maneira combatia as ideias arcaicas sobre sexualidade. Era preciso acabar com o preconceito que ainda existia no teatro e no cinema que impedia a presença dos artistas gays na mídia, a própria classe artística era contra a politica discriminatória contra atores gays submetidos à “clausura” do silêncio. O Fotograma 40 revela esse paradoxo.



Fotograma 40 − O couro de John Wayne e “leather movies”

Fonte: huffpostbrasil.com
Combater o preconceito homofóbico dentro da instituição cinematográfica nunca foi um trabalho fácil, pois a relação do cinema com o gênero e os atores que eram nitidamente gays era um campo delicado, porém as mudanças de comportamento não mais permitiam esse tipo de pensamento que era então combatido pelos próprios artistas, ou seja, essa filosofia preconceituosa não tinha mais espaço na indústria cinematográfica e os futuros trabalhos já despertavam para novas propostas que envolvessem as temáticas gays.

Era preciso entender que os artistas, em especial, de Tatuagem e do Dzi Croquettes tinham em sua logística de apresentação elementos como a sexualidade, o sexo e, principalmente, como trabalhavam o gênero, nos palcos, independentemente do sexo, viviam a plenitude que as artes proporcionam. Para eles não havia a armadilha de ser “descoberto”, caso fosse gay e muito menos seriam alvos de punição, como o banimento do teatro, por exemplo. Dentro dessa realidade de maior liberdade, o profissional do cinema que se identificava gay tinha a simpatia do público e era aceito não pelo fato de ser gay, mas pela bravura de se expor e de mostrar a realidade que não deixava atores gays despertarem para o sucesso e para fazer frente a isso eles apenas viviam suas vidas sem mais o medo da indiferença. por isso, é pertinente citar da futura proposta queer seriam melhor recebidos e nesse sentido ser “diferente” não era mais estranho, apenas era. Paul Zumthor em relação às diferenças nos lembra que:

Renovam-se então uma continuidade que se inscreve nos nossos poderes corporais, na rede de sensualidades complexas que fazem de nós, no universo, seres diferentes dos outros. E nessa diferença reside alguma coisa da qual emana a poesia (2018, p. 38).

As palavras de Zumthor (2018) apontam para uma visão que o movimento queer propunha, que dá espaço para novas categorias de pensamento e não mais para modelos que enquadram as pessoas tornando as identidades estáticas, como algo consolidado, pois as identidades estão em constante movimento e ficar parado não significa ignorar os problemas e sim vê-los como algo que precisa a todo momento ser trabalhado como se fosse uma construção permanente.

É interessante destacar como a ideologia reforça a ideia de liberdade na formação do perfil dos personagens e a presença dos elementos caracterizantes tornam a obra ainda mais bela, aspectos que influenciariam a cultura queer nos dias atuais e que fazem Tatuagem estar além de seu tempo, fazendo parecer que estamos vivenciando as experiências deles nos dias atuais. A rejeição da presença gay nas artes cinematográficas e teatrais fortemente influenciada pela heterotopia[40], mesmo diante de tantas adversidades, ideia fervorosamente combatida pelos artistas que se identificam como gays que, com isso garantem até os dias atuais entretenimento graças aos questionamentos iniciados décadas atrás.

O corpo, em Tatuagem, se destaca pela sua materialidade na produção e realização de fantasias e esses são desafios que devem ser enfrentados contra todo e qualquer tipo de ato que ameace a liberdade ou os direitos civis pois as materialidades se fazem presentes no direito de ir e vir. Os agentes, com sua beligerância, almejavam docilizar os corpos e, em nenhum momento, pensavam o contrário, por isso, cabia aos movimentos não só gay, mas estudantil, negro, lésbico o empenho em produzir exatamente o contrário. A ordem era deixar os corpos falarem, a voz ser ouvida com o auxilio dos espetáculos coloridos, musicais alegres e performances contemporâneas, pois, no Chão de Estrelas, os corpos produziam uma narrativa semelhante aos shows do Dzi Croquettes.

O que, de fato, vemos são variações de corpos múltiplos em uma dança hipnotizante a ponto de enganar os próprios censores, de fato os dançarinos “faziam o show acontecer” e era preciso coragem para enfrentar seus perseguidores. Existiam muitas maneiras de entretenimento e a dos nossos artistas se fazia pela exaltação dos corpos que criticavam tudo o que não era permitido, por isso, eram vistos como baderneiros inúteis que precisavam ser “ressocializados”. É pertinente aqui citar o pensamento de Deleuze sobre esse tema: 
[é o] processo de construção das subjetividades que torna esse trabalho único. A relação dos saberes e poderes da sociedade atual é que configura tais subjetividades para a construção de gênero, sexualidade, resistência, disciplina e controle dos sujeitos (2013, p. 189).

O grupo teatral se encaixa nessa subjetividade deleuziana, seus personagens retratam o cenário graças às proezas e profissionalismo de seus integrantes por estarem abertos às possibilidades de construção em um jogo onde a linguagem cria e resolve problemas.

Considero este capítulo como um show à parte, pois, como no filme e no teatro, encerro as apresentações de forma parecida com o fim das apresentações, mas não sem antes lembrar que mais do que corpos, apresentei pessoas em suas extraordinárias performances em cuja expressão artística imperava a arte da alma, dos corpos, dos desejos. Foi preciso um movimento que rompesse com a arte estabelecida (COHEN, 2002) e, no Chão de Estrelas, vimos isto acontecer, pois seus personagens ousaram e seguiram em frente através de desafios inusitados e hilários sem perder a firmeza da convicção sarcástica, destacando o humor como principal personagem para fazer frente aos desafios como se fosse mais um ensaio a ser superado.

A cinematografia de Tatuagem projetou o Chão de Estrelas não apenas nas imagens selecionadas, mas na inovação dos conceitos criados e discutidos pelo diretor a fim de revelar, mais do que modos de vida, questionamentos e respostas. Como em toda arte, temos como inspiração o desejo, o grito de liberdade, um corpo sem fronteiras como se fosse um novo território baseado em uma nova ideologia que abrisse precedentes para que as pessoas não fossem mais perseguidas conduzidas pelo pensamento e gracejo dos corpos.

O ímpeto desse trabalho foi o de superar o medo em uma trajetória cercada pela constância das agressões e mesmo assim os personagens da vida real e fictícia construíram sob a opressão os pilares de alguns dos direitos primordiais de que gozamos atualmente, e graças a pesquisas como esta as pessoas têm voz e são amparadas por uma arte que perdura até hoje graças ao trabalho desses visionários que tinham em suas veias o desejo de ser feliz maior que o temor e com seus estilos e carisma criaram um lugar que permitisse às artes cênicas e desse continuidade a esses movimentos iniciados décadas antes por artistas que se prontificaram, em nome da arte, a imprimir sua trajetória na história de nosso país como fizeram o Dzi Croquetes e a trupe do Chão de Estrelas.



CONSIDERAÇÕES FINAIS

A arte tem o poder de transforma a relação do ser humano com ele mesmo e, graças a este poder, ela cria e recria, através de palavras, gestos e movimentos, a construção de sua própria essência. Baseado no poder da arte, cheguei ao final de minha proposta e é chegado o momento em que atinge seu ápice anunciando o fim desta dissertação.

Meu ponto de partida, apresentado na Introdução, foi a proposta de trabalhar duas produções nacionais, Dzi Croquettes, de Tatiana Issa e Raphael Alvarez, e Tatuagem, de Hilton Lacerda, através das quais apresentei um mundo envolto pela penumbra do medo sob a rigidez de um governo mão de ferro e, ao mesmo tempo, o oposto, dois universos repletos de homens cuja coragem tornaram as narrativas mais alegres e coloridas, esse mesmo governo seria o responsável pelo surgimento de pessoas que os enfrentaria, transformando, quando possível o temor em um mundo mágico, alegre, onde a fantasia, por alguns instantes, seria o suficiente para encorajar as pessoas graças aos gracejos e aos corpos purpurinados, contribuindo para que o cenário nacional despertasse para as mudanças que, timidamente, eclodiam no horizonte.

A premissa acadêmica orienta uma conclusão, assim, finalizo minha interação com o leitor como sendo a ponte desse encadeamento que, por sua natureza, ainda produzirá trabalhos como este e outros, com suas propostas, continuarão os temas relacionados aqui pela sua riqueza social e cultural e as questões que precisam ser continuadas, principalmente quando se refere à disciplina obrigatória imposta às pessoas. Como pesquisador, não raras vezes tive a sensação de estar preso em “meus grilhões” não como nos porões da ditadura, mas preso por um sistema educacional e disciplinar cujo trabalho até hoje tem dado resultados, daí a importância de contribuir com esta dissertação que, ao mesmo tempo, me impulsiona, cada vez mais, a me engajar em campanhas contra a homofobia e o preconceito contra os LGBTQI+.

Percebi nesse trabalho que o fundamental é não deixar as pessoas insultadas sem amparo, que o combate às ideologias proibitivas e punitivas se faz a todo momento e uma das ferramentas é, justamente, utilizar-se do proibido para mostrar o papel de homens que rebolavam e se vestiam de mulher cujo desejo era de liberdade e de ser livre e feliz, mesmo que, para isto, precisassem lutar contra conceitos patriarcais que não faziam mais sentido em pleno séc. XX. Nesse sentido, trago a fala de Miskolci e Pelúcio, para os quais os “homens de verdade” deveriam ser: 
másculos, ativos, empreendedores, penetradores. Elas não são “homens de verdade”, são “bichas”, “viados”, “monas”. Tampouco são mulheres, nem o desejam ser. São “outra coisa”, uma “coisa” difícil de explicar, porque, tendo nascido “homens”, desejam “se parecer com mulher” (MISKOLCI; PELÚCIO, 2007, p. 7).

Os personagens do filme e do documentaria desejavam ser felizes e, para isto tinham que lutar pelo direito de conquistar o tão desejado sorriso. A trajetória dos dois filmes visava a felicidade e a liberdade, cada qual à sua maneira e, para isto, precisei me despir das ideias engessadas e preconceituosas que me foram incutidas durante décadas pela cultura machista, e a nova proposta indicava mudanças em meu pensamento, Precisei, então, expandir o meu entendimento sobre o universo LGBTQI+, e me colocar no lugar de quem dava voz ao enfrentamento contra o autoritarismo militar e, diante das informações da funcionalidade do mecanismo, finalmente, compreendi a nocividade do ideário heteronormativo ao classificar o pensamento dos gays, segundo Butler (2017, p. 11), como “invariavelmente associada a forma de ininteligibilidade cultural”. Eram preconceitos como esse no meu entendimento que precisavam ser trabalhados para depois, eliminá-los a fim de conduzir este trabalho visando a integridade e o bem estar do sujeito gay trabalhado nesta dissertação.

Reforçar seus valores foi essencial e me fez perceber que, nas duas obras (Dzi Croquettes e Tatuagem), inexistiam registros de vidas respaldadas em uma linha que seguia os trâmites da heterossexualidade, que o que havia eram rompimentos confirmados pela caracterização das vestimentas, dos diálogos e performances dos personagens que, segundo Butler (2001, p. 154), “deve ser compreendida não como um ‘ato’ singular ou deliberado, mas, ao invés disso, como uma prática reiterativa e citacional pela qual o discurso produz os efeitos que ele nomeia”. A incompreensão dos corpos dissidentes nas duas obras cinematográficas indicava que, durante os anos de vigência do governo militar no comando de nosso país, seu poder acontecia em todas as esferas sociais, fora e dentro do contexto da macropolítica, já na micropolítica dos corpos a subversão impulsionava os corpos falantes a fim de tornar a arte mais transgressora e atuante, transformando-os em corpos políticos.

No início de minhas pesquisas, imaginava encontrar pessoas cheias de histórias alegres e homens mais felizes ainda com suas performances transloucadas em palco e, por isso, apresentei a proposta de filmes construídos em cima da ideia de liberdade, mas, infelizmente, o que encontrei foram homens que lutavam contra um sistema privativo de liberdades no qual as pessoas discordantes eram perseguidas e agredidas. Nesse período, os direitos civis estavam cada vez mais sendo “cassados” e o que encontrei, de fato, foi o desprezo contra os que pensam diferente da norma.

Toda obra tem seu início, no meu caso, não foi diferente, algumas perguntas me atormentavam, tais como por onde começar? Iniciarei o trabalho com quais informações? Dei início ao projeto assistindo várias vezes aos filmes para entender qual era a mensagem dos diretores e o que eles esperavam de seus personagens e me questionava como colocaria tudo isso no papel. A incerteza me angustiava e, a cada reunião de orientação, minhas dúvidas pareciam desaparecer, mas o medo de errar e a ansiedade aumentavam cada vez mais e, então, percebi que tais dúvidas não passavam de percalços e que, depois desta tarefa árdua, sairia mais fortalecido.

Falar de corpos não foi uma tarefa fácil ainda mais pelo fato de eles terem feito parte de um processo transformador na sociedade e ao registrar esses comportamentos (e me colocar junto com eles) senti como as emoções vêm à tona diante da força do Estado e percebi que a democracia deve ser a todo momento defendida. Descobri, em Dzi Croquettes e Tatuagem, que o teatro tem seus altos e baixos e que cada tropeço serve para que nos levantemos mais fortes e experientes.

Não considero as duas obras como algo que não deu certo, foram duas propostas em que os diretores se empenharam em tornar factuais e, assim, o resultado é sentido pelo conjunto de elementos apresentados, pois os dois filmes contêm fortes identificações com a política foucaultiana em relação aos corpos que revelou haver algumas falhas não nos filmes, mas no convencionalismo político e, assim, assumiram um papel político visto que, muitas vezes, é falho ou insuficiente. Senti que, ao trabalhar nessas obras, minhas preocupações foram amenizadas, pois percebi que o trabalho por sí só começava a “progredir” dando-me mais serenidade para perceber que as escritas já estavam acontecendo e que minhas inquietações haviam diminuído. Ao finalizar esta produção científica, ainda de acordo com Colling (2016, p. 10), pude “entender que o ativismo também produz conhecimentos e de que toda essa produção precisa estar a serviço de políticas para que as pessoas respeitem as múltiplas sexualidades e gêneros existentes em nossas sociedades”.

Este trabalho não está voltado somente para a comunidade LGBTQI+, mas para todo leitor que simpatize e se identifique com o teor aqui descrito. Respeitando as normas acadêmicas, acredito que o esforço valeu a pena e, como os personagens, compreendi que a multiplicidade torna as coisas mais belas, coloridas e que o erro ensina e o correto pode ser diversificado.

Dentro da proposta, analisei os filmes e senti as angústias dos personagens vítimas do abuso de poder dos militares, aprendi com a alegria do Dzi Croquettes e as provocações do Chão de Estrelas que podemos ir muito mais do que os limites que nos impõem, ao assistir os filmes percebi que a inquietação e os desejos fazem parte de nossas vidas, que somos a transfiguração de um corpo desejante (BUTLER, 2017), por isso entendi a ligação entre o artista e o público, fazendo a ponte entre esses dois mundos, ou seja, atrever-se a ir além de si mesmo. Procurei não apenas fazer parte de suas histórias, mas, através de minhas escritas, dar início a novos projetos depois do meu, afinal, não se trata de conclusões finais e sim do próximo passo para que outros pesquisadores deem continuidade ao que aqui foi apresentado.

As informações contidas nesta pesquisa fizeram-me repensar as mudanças a que os artistas dos anos 70 se propuseram e o patrimônio artístico deixado por seus trabalhos para as futuras gerações. Para mim, as riquezas das informações foram utilizadas para uma melhor compreensão de nosso passado e para estimular trabalhos futuros sobre esse período de nossa história do qual destaco não apenas as perseguições, o medo e a censura, mas o legado desses homens decididos, alegres, ousados e provocadores que, com as suas performances, o teatro se reinventou, os movimentos se fortaleceram, as pessoas passaram a se aceitar dentro das dissidências, diversidades e multiplicidades sexuais.

Os espetáculos davam ao público uma pequena amostra de como as pessoas viviam naquele período, suas provocações iam além das determinações de seu tempo e, mesmo em tempos difíceis, nos ensinaram lições importantíssimas, criaram novas formas de se apresentar, deram às artes cênicas outras interpretações além de criarem novas tendências. A partir deles não se pintaria mais o Brasil de verde oliva, mas, também, com as cores do arco-íris. Ressalto, ainda, que as imagens retiradas mostram a desterritorialização do sujeito de sua área de conforto, sempre lembrando que os acontecimentos e fatos reais ou fictícios almejavam o enfraquecimento das normas. O comportamento sexual sempre foi arduamente atacado pela doutrina moral e cristã e o combate ocorreu pelos movimentos da contracultura, pela presença maciça dos brasileiros que viam seu país dominado por uma cultura ultrapassada e que as mudanças exigidas eram imediatas, que o velho patriarcado lutava para se impor, mesmo que pela força, as mudanças aconteciam e paulatinamente, as forças militares se encontravam enfraquecidas pelas novas propostas de igualdade e respeito graças a trabalhos iniciados, dentre outros, pelo Dzi Croquettes e pela mensagem de Tatuagem. Quase quarenta anos depois, o tema continua tão atual e isto mostra que temos muito ainda o que mudar.

As performances de nossos artistas não ficavam apenas nas provocações sexuais, mas na maneira como eles viviam, nesse contexto o teatro apresentado por eles era voltado ao choque que provocaria por causa da inovação e do fortalecimento dos modos de se trabalhar o coletivo (GARCÍA; THÜRLER, 2018). O simples ato do corpo politico se rebelar e se transformar em uma ferramenta política anunciava novos tempos, não havendo mais lugar para velhas ideologias, a proposta agora era de expandir o amor e diminuir a racionalidade. O Dzi Croquettes via a arte como resposta aos censores, e Clécio e Fininha junto com a trupe provaram que a malandragem comportamental não pertencia mais aos palcos do Chão de Estrelas ou da velha Olinda e graças a eles seus gestos definiriam suas vidas e, como na vida real, nem sempre o final é feliz.

Descobri que a arte é essencial para a construção do ser humano, sua função é amenizar as agruras diárias, que ela existe para deixar a vida menos maçante e ainda pude comprovar que a herança cultural deixada por eles repleta de subjetividades abriam novos caminhos, desvendavam novos territórios e principalmente propiciavam alegrias onde antes imperava o proibido.

Concluo meu trabalho positivado pela linguagem não convencional dos corpos performáticos por produzirem signos em torno da sexualidade, sendo este um dos fatores responsáveis pela contracultura dos olhos que vigiam. Foi preciso inovar para fazer frente às premissas determinantes tanto do Dzi Croquettes com seus rebolados quanto de Tatuagem com a polka do cu e o romance proibido de Clécio e Fininha tido como algo vergonhoso para a sociedade conservadora sob a égide da moral e bons costumes. Tenho ciência de que este trabalho é um caminho aberto para sua continuidade, pois ainda há muitas pesquisas a serem feitos sobre a dissidência dos corpos. Os resultados apresentados por mim deixam minha escrita respaldados não apenas pelas leituras dos autores, mas pelas leituras dos corpos, dos sujeitos e de gente que se expressa pela alegria da performance.

Penso que, ao iniciar um projeto como este “o importante é o andar, e não o chegar. Não há um lugar de chegar, não há destino pré-fixado” (LOURO, 2018, p. 13) e, assim sendo, positivei minhas pesquisas a fim de indicar novos caminhos pela vastidão do tema graças à performance e à teatralidade em uma ótica que revele outras dinâmicas de pesquisa tendo como ator principal o sujeito LGBTQI+.

Caro leitor, a defesa desta dissertação ocorreu no ano de 2020, logo, alguns termos eventualmente não condizem com a data atual desta postagem no ano de 2023.

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  ZORZELA, Thaís Aparecida. Corpo, história e discurso: um olhar sobre efeitos de liberdade e censura em tatuagem. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem) − Universidade Estadual de Londrina, Londrina-PR, 2017. Disponível em: http://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UEL_dddfee0e1f59f5d161b6c95254edb684 Acesso em: 28 jul. 2020.

  ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Ubu, 2018. p. 27-42. Disponível em: https://www.academia.edu/37234103/ZUMTHOR_Paul_Performance_recepcao_leitura. Acesso em: 25 fev. 2020.

FILMES

Dzi Croquettes. Direção: Tatiana Issa; Raphael Alvarez. Brasil. Tria Productions e Produções Artísticas. Tempo de duração: 109 min/Ano de lançamento: 2009. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OGrIMj-4UWc&t=253s.

Tatuagem. Direção: Hilton Lacerda. Produzido por João Vieira Jr., Chico Ribeiro, Ofir Figueiredo. Tempo de duração: 110min/Ano de lançamento: 2013. Disponível em: https://globosatplay.globo.com/assistir/c/p/v/6421857/.

 

 

 

[1]    No caso do ator, havia uma particularidade, ele vinha de uma família que tinha militares em seu cerne, logo, para ele, era preciso expurgar os demônios e fantasmas que o assombravam.

 

[2]    A sala Galpão, no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, foi invadida e depredada, no dia 18 de julho de 1968, na encenação de “Roda Viva” dirigida por Chico Buarque. Os agressores eram estudantes de economia, advogado e dois eram formados pela Mackenzie.

 

[3]    1969-1973: os “anos de chumbo foi um período em que os direitos civis quase sumiram por causa do AI-5 (13/12/1968). Fortes repressões e atos de violência foram desferidos contra a população, estudantes e trabalhadores, houve centenas de pessoas presas e exiladas, eram intelectuais e artistas (GASPARI, 2002).

 

[4]    Espetáculos de teatro tiveram a sua apresentação proibida por serem associados ao homossexualismo e por romperem o padrão de comportamento de gênero masculino. Disponível em: https://www.uol/noticias/especiais/ditadura-brasileira-contra-os-gays.htm#tematico-4.

 

[5]    As reflexões mais aprofundadas sobre o filme Tatuagem de Hilton Lacerda serão exploradas no Capítulo 3 no qual focalizarei a maneira controversa e a bravura da proposta dos personagens acerca da construção dos corpos sob a ótica da performatividade e do (contra)discurso.

 

[6]    GLS é uma sigla para definir os gays, lésbicas e simpatizantes. A expressão foi frequentemente usada no Brasil para definir espaços, produtos, serviços e locais destinados ao público homossexual. Há boatos de que o termo vem até mesmo de antes da década de 1990, dos anos de 1980, como símbolo da cultura clubber, mais conhecida pela Nation Disco Club. A sigla GLS, algumas vezes, é usada indiscriminadamente como sinônimo para o acrônimo LGBT, porém, o primeiro se refere ao segmento de mercado, o segundo tem um caráter político-social, referindo-se ao conjunto das minorias sexuais e identidade de gênero divergente da designada no nascimento.

 

[7]    Indicado para o tratamento da AIDS, o AZT foi uma das primeiras drogas aprovadas no Brasil. Disponível em: http://www.rnpvha.org.br/medicamento-contra-a-aids-zidovudina-azt.html.

 

[8]    FOUCAULT, Michel. O corpo utópico. Conferência. 1966. Disponível em: https://www.geledes.org.br/cansada-de-ler-sobre-garotos-menina-reune-4-000-livros-com-garotas-negras/.

 

[9]    O grupo surgiu em 1974 na cidade de Olinda/PE, e era o braço artístico da Pastoral da Juventude da Arquidiocese de Olinda e Recife – foram expulsos da Ordem logo depois da estreia por encenar homossexualidade, violência, massificação e drogas.

 

[10] Ciro Barcelos, nasceu em Porto Alegre (RS), aos 18 anos entrou para o Dzi Croquettes através de Lennie Dale.

 

[11] ESG: Escola Superior de Guerra e SNI: Serviço Nacional de Informação.

 

[12] O grupo inicialmente era formado por Wagner Ribeiro, Roberto Rodrigues, Cláudio Gaya, Bayard Tonelli, Reginaldo de Poly, Rogerio de Poly, Paulo Bacellar, Claudio Gaya e Ciro Barcelos.

 

[13] O voar ao som de Assim Falou Zaratustra, representado por Wagner Ribeiro que repete inúmeras vezes em francês e em italiano “Voem! Suas palavras multiplicadas por si mesmas, elevadas à própria potência, parecem dar voltas no espaço daquele teatro (CYSNEIROS, 2014, p. 97).

 

[14] A performance, para Cohen, é aquela que muitas vezes causa choque na plateia (acostumada aos clichês e à previsibilidade do teatro); é basicamente uma arte de intervenção. (2002, p. 45).

 

[15] Dentre as personalidades históricas imitadas pelo Dzi Croquettes estavam Hitler, Carmem Miranda, Billy Holiday e, até, a Estátua da Liberdade.

 

[16] Lennie Dale nasceu no Brooklin (1937), descendia de italianos e dançava desde criança.

 

[17] Fez parceria com Elis Regina em algumas apresentações como cantor. Fonte: Folha de São Paulo.

 

[18] Para Parsons, a família nuclear era vista como um modelo democrático, pressuposto implícito desta postura é pensar que o conceito “família” refere apenas a modelos hegemônicos.(HITA, 2005, p. 110.

 

[19] Tietes: foi um termo forjado por Duze Naccarati (atriz), segundo Regina Mulller e Leiloca, tempos depois foi para o dicionário Aurélio.

 

[20] Estados Unidos, capitalista, versus União Soviética, comunista que, nos anos 1960 e 1111970, ocorreu no campo das ideologias.

 

[21] A Revolução dos Cravos ocorreu em Portugal em 25 de abril de 1974, resultante do movimento político que depôs a ditadura do Estado Novo, implantou a democracia e a nova Constituição.

 

[22] Dzi Croquettes, a trupe brasileira.

 

[23] Josephine Baker era uma grande fã do grupo e expressou o desejo de ter o Dzi Croquettes no palco caso ela morresse. Faleceu de síncope cardíaca em 12 de abril de 1975.

 

[24]  Segundo Lobert (2010), o Dzi Croquettes enfrentaria uma série de problemas para voltar a trabalhar durante o Festival de Verão – três vezes censurado na pré-estreia − que desencadeou uma violenta crise no grupo em janeiro de 1976.

 

[25] Segundo Costa (2016, p. 64), a subversão “mostra-se sempre além do corpo [...] realiza-se exatamente na forma como o corpo se coloca no mundo e transforma-se com ele”.

 

[26] Bicha fechativa é um termo que se refere aos homossexuais que extravasam ou que possuem trejeitos associados ao espectro feminino ou de passividade conhecida pelo exagero comportamental e de aparência escandalosa, chamam a atenção pelo linguajar carregado de gírias.

 

[27] Quando uso o termo “doença” me refiro ao termo pejorativo com que o comando militar e a sociedade homofóbica se referia aos gays e aos comunistas como uma possível ameaça à soberania do país e aos bons costumes.

 

[28] No imaginário popular gay as fantasias por homens fardados sempre foram um dos fetiches preferidos desse universo fantasioso, em particular os militares (policiais, soldados, bombeiros, socorristas, guardas municipais); os soldados em seus uniformes dão a ideia do “material” que o fardamento esconde. A referência ao texto é sobre a cena em que os jovens estão no banheiro do quartel tomando banho, nesse espaço o cheiro, o suor, os respingos despertam os desejos de todo soldado homossexual, em particular para Fininha que vive na clausura do armário.

 

[29] No Brasil, segundo o Art. 235 do Código Militar, é considerado crime por prática, ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano.

 

[30] Darkroom é mais conhecida em português como sala escura e pode ser encontrado em boates GLS, saunas gays, casas de swing. Nela, os homens se tocam e a partir daí, existe várias formas de se ter prazer, seja ele oral, anal ou grupal. No darkroom, os frequentadores já adentram ao ambiente sabendo o que irão encontrar, mas sem identificar os frequentadores, isso faz parte do desejo em ter prazer no anonimato, os homens contam com a expectativa de encontrar alguém que lhes de prazer de acordo com o seu anseio. O prazer consiste exatamente em fazer sexo e ter prazer sem ver o rosto da pessoa, em sua procura para realizar os bel-prazeres a pessoa tem o corpo tocado, beijado, o belo e o feio não existem, nele os homens “leem” os corpos pelo tato das mãos (inicialmente), infelizmente é um ambiente onde na “volúpia” do sexo, sempre há os que praticam sexo sem preservativo, outros se “conhecem” no darkroom e terminam o encontro em locais conhecidos como sala romana, lá ocorre as orgias ou aos quartos particulares que o ambiente dispõe.

 

[31] Quando Adriano Cysneiros (2014, p. 53) diz que viver uma vida falsa é o mesmo que nada, ele transmite a ideia de que ao compartilhar uma experiência de uma vida que “não é própria, uma vida marcada pela ambivalência” ele quer dizer que não devemos viver pela ditadura do medo da descoberta e pela percepção da loucura social que força uma larga parcela da população a viver uma constante consciência de duplicidade”; tais pensamentos reforçam a ideia de ser feliz sem medo.

 

[32] O Vivencial Diversiones era um grupo teatral que entre os anos de 1974/1978 existiu no estado de Pernambuco na cidade de Olinda. A proposta do grupo era ousada para a época principalmente por trabalharem as artes cênicas e estéticas do cenário naquele momento; foi fortemente inspirado pela onda da contracultura e pela proposta do tropicalismo, este era tido como a principal ideia na criação coletiva. O Chão de Estrelas carregava elementos parecidos com o Vivencial tanto na subjetividade como na contracultura, faziam uso de salto alto no mangue por estarem em constante movimento, eram a perversão, a anormalidade, de fato o que ocorre foi um filme dentro de outro filme, afinal eles eram referência viva para a produção de Tatuagem. Os dois grupos têm muito em comum, os corpos, as identidades de gênero, a homossexualidade. São produções que criam miram a uma dissidência de gênero, difundida atualmente em muitos artistas performáticos e que tiveram em figuras do passado, a exemplo dos Dzi Croquettes, seus precursores.

 

[33] “Diretas Já” foi um movimento civil de reivindicação por eleições presidenciais diretas no Brasil ocorrido entre 1983 e 1984; políticos e artistas dividiram o palanque em vários atos até o dia 25 de maio, a possibilidade de eleições diretas para a Presidência da República no Brasil se concretizaria com a votação da proposta de Emenda Constitucional Dante de Oliveira (PMDB) pelo Congresso para a realização de eleições presidenciais diretas em 1985. O rock nacional começou timidamente nas garagens dos integrantes das bandas, o conteúdo das músicas geralmente eram de cunho politico e iam de encontro com as politicas da policia. Bandas como Legião Urbana, Titãs, Barão Vermelho, Engenheiros do Havaí, Capital Inicial, Paralamas do Sucesso, Kid Abelha entre outros eram a voz de milhares de jovens que se sentiram prestigiados pela letra de seus ídolos. A forma de reivindicar mais direitos foi através das letras das músicas cantadas e cheias de protesto pelos jovens do país todo conquistando os jovens das periferias até a juventude da classe média. O evento ficou claramente conhecido como uma celebração que coroaria a volta da democracia em 1985.

 

[34] “Essa noção valoriza a ação em si, mais que seu valor de representação [...] O teatro está inexoravelmente ligado à representação de um sentido, passe ele pela palavra ou pela imagem. Ele projeta ali um sentido, um significado. Essa ligação com a representação que Artaud recolocou em questão na seqüência das grandes correntes artísticas do início do século XX, deixou igualmente sua marca no teatro, ainda que mais tardiamente” (FÉRAL, 2008, p. 201).

 

[35] João Silvério Trevisan é escritor e jornalista e no período em que viveu na capital pernambucana além de vizinho, era muito amigo de Hilton Lacerda, dessa amizade, Lacerda recebeu todas as informações necessárias para compor a obra tendo como referência o Vivencial Diversiones. [S.l.].

 

[36] O 1º Regimento de Cavalaria de Guardas (1º RCG), oficialmente denominado como Dragões da Independência, pertence ao Exército Brasileiro que guarnece a Presidência da República.

 

[37] Para Berenice Bento (2013, p. 275) as configurações familiares estão se adaptando à realidade que vivemos atualmente, assim, relega padrões históricos de como e por quem a família deveria ser gerida. Historicamente defendida pela igreja e pelo patriarcalismo, o modelo papai-mamãe vem sofrendo mudanças ao longo de décadas no Brasil, mas o núcleo da família continua sendo o centro familiar, o que mudou foram seus “gestores”, a divisão binária de tarefas segundo as diferenças sexuais não tem mais espaços nesta nova proposta, ou seja, a heterossexualidade não é mais o único caminho a ser trilhado, graças à “despatologização das homossexualidades”, novas concepções de famílias ganham forças.

 

[38] Exemplo de filmes que despertaram para o cenário nacional: Madame Satã (2001), A festa da menina morta (2009), Do começo ao fim (2009), Meu amigo Claudia (2009), As melhores coisas do mundo (2010), Elviz e Madona (2011), Teus olhos meus (2011), A volta da Pauliceia desvairada (2012), Eu te amo Renato (2012), Olhe pra mim de novo (2012), Favela Gay (2014), Laerte-se (2017).

 

[39] As dissertações e teses que me serviram de apoio pertencem aos seguintes autores: Marcos Antônio dos Santos: Tatuagem: de dentro para fora, um estudo do processo de criação a partir do roteiro do filme (UFP/2014), André Luiz dos Santos Paiva: Coragem da verdade e estética da existência em Tatuagem, o filme: uma leitura cínico-queer (UFRN/2016), Isaac Dourado Aragão: O êxtase como elemento narrativo na construção de personagens de Hilton Lacerda: uma análise do filme Tatuagem (UFSE/2018), Giovanna Cianella Galvão: A potência política dos corpos no filme Tatuagem (UFF/2017) e Luiza Elayne Azevedo Luíndia: Cinema, homossexualismo, representações sociais: universos simbólico e ideológico do filme “Tatuagem”. (UAM/ 2017).

 

[40] Segundo Michel Foucault (1984, s/p, apud VANDRESEN, 2011, s/p), heterotopia é um espaço onde o diferente está ligado a um outro, ou seja, seu conceito significa lugar, um espaço que pertence a outro ou alguém; nele a busca de si e do outro foi afetado pela razão ocidental afastando um do outro, não dando lugar a diferença, a diversidade. Seus estudos apontaram para a relação de poder cuja objetivação eram elementos ligados ao corpo, a sexualidade, a loucura, as escolas, prisões e hospitais.